A União Europeia (UE) tem sido campeã do liberalismo económico. Os seus principais tratados consagram o princípio do livre comércio, de uma economia de mercado aberta e da livre concorrência. As exceções para interferência estatal na livre circulação de capital resumem-se aos casos de segurança nacional e de ordem pública, como previsto nos acordos da Organização Mundial de Comércio (OMC) que cimentaram a ordem internacional liberal no domínio económico. Mas é precisamente sobre essas exceções que hoje se constroem grandes estratégias europeias como a Estratégia para a Segurança Económica, onde se insere o escrutínio de investimento estrangeiro.
A lista de causas identificadas para esta mudança aparentemente iliberal é bastante extensa, juntando tópicos tão dispersos como a política económica da China, as guerras comerciais dos Estados Unidos, a pandemia, a guerra na Ucrânia e os mais recentes avanços tecnológicos. No entanto, na realidade, a existência da referida excecionalidade nos acordos mencionados representava já um compromisso entre comércio internacional absolutamente livre e os interesses nacionais. A grande diferença para os tempos atuais encontra-se no alargamento do que se considera segurança nacional, por conseguinte, aumentando o uso dessas mesmas exceções.
O mecanismo de escrutínio de investimento estrangeiro dos Estados Unidos da América (EUA), embora criado em 1975, contava, até 2011, com apenas um bloqueio ocorrido em 1990. Desde então seguiram-se sete bloqueios de investimentos estrangeiros. Notavelmente, sete dos oito investidores visados eram chineses.
Ao nível da Comissão Europeia esta tendência emerge na Comissão de Jean-Claude Juncker, célebre na declaração de que a UE não pratica o comércio de modo ingénuo. Até 2017, a maioria dos Estados-membros nem possuía um mecanismo para avaliar o investimento estrangeiro. Em 2024, apenas 5 Estados-membros permanecem sem mecanismo. Ursula von der Leyen resume esta reorientação como uma reação a um mundo que “se tornou mais contestado e geopolítico”. Trata-se do reconhecimento de uma mudança no panorama internacional.
John Mearsheimer explicou esta mudança e as suas consequências para o liberalismo económico: dependente da distribuição de poder, a ordem era essencialmente liberal, porque estava centrada numa democracia liberal; hoje, refletindo um sistema cada vez mais fragmentado, verifica-se o estabelecimento de múltiplas ordens com valores divergentes.
A UE não é, obviamente, imune a mudanças estruturais. A sua reação assemelha-se à de outros atores liberais, como o Japão, que também procuram adaptar-se, estabelecendo um novo equilíbrio entre mercados abertos e segurança nacional. Verifica-se hoje plena consciência e reconhecimento das consequências geopolíticas da atividade económica. O novo pensamento geoeconómico não representa, porém, necessariamente, uma rutura com o liberalismo. Dependendo dos meios utilizados e dos fins pretendidos, a ação geoeconómica pode ser liberal. Como exemplo, destaque-se a estratégia europeia para a conectividade, a Global Gateway. Esta iniciativa, que também se enquadra na estratégia europeia de segurança económica, pretende, entre o setor público e o setor privado, mobilizar 300 mil milhões de euros até 2027 para investimentos internacionais condicionados ao respeito pelo Estado de direito, pelos Direitos Humanos e pelas normas internacionais.
Não obstante a manutenção da génese liberal, a readaptação é evidente, quer em termos de meios, quer em termos de objetivos. A Comissão prioriza a defesa contra a instrumentalização de dependências económicas, numa abordagem multilateral, contudo, também procura a promoção da “vantagem tecnológica”, com o objetivo de liderar “a corrida tecnológica global”. A defesa contra a instrumentalização de meios económicos é compatível com o anterior consenso liberal, pois esse uso pode representar uma distorção do livre mercado. A luta pela liderança tecnológica aproxima-se, porém, de uma visão mais nacionalista, dada a preocupação com a capacidade industrial relativa dos demais atores. No mesmo sentido, a Comissão incumbente anunciava em janeiro desde ano mais uma expansão dos instrumentos geoeconómicos da UE, avaliando, por exemplo, a criação de um mecanismo para monitorizar os investimentos no exterior numa preocupação explícita com o potencial contributo de tecnologias avançadas para as capacidades de Estados que possam “ameaçar a paz e segurança internacionais”.
Assistimos ao estabelecimento de um novo status quo económico resultante do confronto entre o capitalismo de mercado e o capitalismo de Estado. O novo equilíbrio é mais complexo, na medida em que se alargou o âmbito da segurança nacional, mas não se pretende perder os benefícios da liberdade económica. Como refere Margrethe Vestager, a única Vice-Presidente da Comissão Europeia incumbente do atual grupo dos liberais europeus, “poucos conceitos juntam tantos paradoxos” como o conceito de segurança económica e, por isso, “colocar a nossa estratégia em prática é um ato de equilíbrio constante. Entre o “defensivo” e o “assertivo”; entre a abertura comercial e a defesa dos nossos interesses económicos; entre o que damos e o que ganhamos dos outros.”
Nota: Argumentos do artigo EU FDI Screening as a Geoeconomic Tool: Integrating Open Markets and Economic Security, da coautoria de Tiago Luís Carvalho, Carla Guapo Costa e Fábio Colombo, apresentado na Helsinki Geoeconomics Week 2024.