“Governo quer dinheiro de apoios na tesouraria das empresas até ao fim do mês”, dizia o Ministro de Estado e da Economia, Pedro Siza Vieira em conferência de imprensa, dia 15 de Abril. A CIP alerta que o dinheiro não está a chegar à tesouraria das empresas. O que é que está mal? Está mal o formato institucional, está mal o preço de 3%. Então, qual o modelo regulatório para entregar liquidez a custo zero?

Na zona euro, não há emissão de nova moeda, há injecção de liquidez, na forma de dívida.

O Banco de Inglaterra está a emitir moeda para fazer face à calamidade do COVID. A Reserva Federal nos EUA está a emitir moeda. O Japão também… A UE não está a emitir moeda nenhuma. Enquanto o Eurogrupo estava a discutir as condições de endividamento dos países, das famílias e das empresas, o Banco de Inglaterra estava a emitir moeda.

Emitir moeda para fazer chegar rendimento às famílias e agentes económicos e manter o consumo e a satisfação elementar das necessidades básicas, dando uma tábua de salvação ao tecido económico empresarial que permita em pouco tempo entrar em fase de retoma, isto, os países da zona euro não podem fazer. Amputaram as mãos na União Monetária incompleta, como quem sai de casa, bate a porta e deixa a chave lá dentro.

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Achou-se que as economias convergiriam economicamente e, em ordem à estabilidade de preços, aceitámos nunca mais vir a precisar de emitir moeda e ficar todos vinculados ao marco alemão, re-baptizado para euro.

De modo que quando é preciso aumentar a massa monetária, contrai-se dívida, e o Banco Central Europeu, na zona euro, que é uma bank-based economy, substitui imperfeitamente a faculdade soberana dos Estados de cunhar e emitir moeda.

Transferir a liquidez para a economia real é uma função de interesse público.

O Banco Central Europeu, no seu pacote de três triliões, vai disponibilizar fundos às instituições de crédito a uma taxa negativa, que pode ir até 0,75% a taxa mais baixa jamais oferecida pelo BCE, para garantir que a liquidez chega aos que dela mais precisam (!)

E acrescenta Lagarde num comunicado de 9 de Abril, que assim se encorajarão os bancos a conceder empréstimos a microempresas e a comerciantes individuais que, em geral, têm menos acesso a crédito e a refinanciá‑los através de empréstimos do BCE por prazos até três anos a taxas de juro negativas. 

Portanto,  a reter como palavras-chave do BCE na caracterização do plano de ajuda: taxas negativas inéditas até -0,75%, encorajar as instituições de crédito, garantir que a liquidez chega a quem mais necessita.

O financiamento junto do BCE a taxas negativas tão baixas serve de substituto de emissão de moeda, é a nova ‘moeda; a sua transferência para a economia é a forma de aumentar a massa monetária em circulação numa Euro Área desenhada na dependência do sistema bancário.

As cinco faculdades clássicas de um Estado soberano são: o poder de fazer leis e administrar a Justiça, o poder de declarar a guerra e fazer a paz, o poder de cunhar e emitir moeda, o poder de lançar impostos e o poder de criar cargos públicos.

Nos dias de hoje, a transferência de liquidez num quadro de estado necessidade, é uma função de interesse público e de realização da soberania do Estado, função que os bancos são chamados a desempenhar como intermediários.

A que preço é que os empréstimos podem qualificar como transferência de liquidez? 

O que a actual presidente do BCE, Christine Lagard, quer dizer quando diz que tem de se garantir que a liquidez chega aos que dela mais precisam, é aquilo que o seu antecessor Mario Draghi diz sem rodeios num artigo de opinião no Financial Times: que os bancos devem rapidamente emprestar dinheiro a custo zero às empresas para salvar empregos. E que o Ministro Siza Vieira quer quando pede para o ‘dinheiro chegar à tesouraria das empresas até final deste mês.

Em Portugal, o ‘custo zero’ transformou-se em 3%, dos quais 1% é tomado pelas Sociedades de Garantia Mútua (SGM), 1% a 1,5% pelo spread e ainda mais 0,5% de comissão de gestão dos bancos. É preciso emendar a mão, com um modelo regulatório que assegure que há instituições bancárias a emprestar rapidamente e a custo zero. O Governo dispõe de mecanismos de regulação económica para criar um quadro institucional capaz de assegurar que a liquidez chega à economia a custo zero. É o que propomos neste texto, dividido em duas partes.

Um modelo regulatório capaz de corrigir o mercado

Quando pretenda atingir um objectivo de política económica de satisfação de uma necessidade de interesse público, como é inquestionavelmente o caso, um governante tem três opções:

  • Pode confiar ao mercado o desempenho dessa função e eventualmente estabelecer requisitos através de soft law, recorrendo a formas de negociação com o sector privado (corresponde à actual opção do Governo).
  • Pode incumbir por acto legislativo uma entidade do dever de desempenhar essa função de interesse pú
  • Pode consagrar um modelo misto em que uma entidade por si controlada desenvolve a actividade económica de acordo com os parâmetros de realização do interesse público e os demais players do mercado são admitidos a participar nessa actividade dentro dos mesmos moldes. Criando-se como que um segmento de mercado adjacente ao mercado privado corrente e que se diferencia por garantias de Estado, taxas de juro baixas, obrigações de reporte e fiscalização de condições de elegibilidade para participar no sistema.

O modelo de serviço público

A moeda que o Estado português não pode emitir, teria, se existisse, a óbvia natureza de um bem público. Na sua versão pós-união monetária na zona euro a que pertencemos, a moeda chama-se agora “liquidez”. Transferir esta liquidez, com estas características, é comparável a emitir moeda, e isso equivale a fornecer um bem público. Um bem público tão essencial que encerra uma das fundamentais materializações da soberania; como o é a feitura das leis ou a disponibilização e organização do exército.

Numa UEM incompleta, com uma economia sem liquidez, altamente endividada e sob o garrote de uma moeda demasiado forte, quando o mercado bancário não transmite para a economia a liquidez que o BCE está a fornecer a custo negativo, não passando para os agentes económicos visados os benefícios concedidos pelas medidas de política monetária, tem de se deitar mão de um mecanismo que assegure a satisfação do interesse público na passagem dos relief checks.

Num quadro de calamidade essa função de serviço público excepciona e escapa, quer à pura lógica comercial, quer à plena aplicação das leis gerais da concorrência, tal como em guerra, em estado de calamidade ou num quadro em que a economia é interrompida, a tutela dos consumidores em livre concorrência não pode preceder a premência do valor vida e sobrevivência. Até porque para haver consumidores, tem de haver pessoas vivas; para haver mercado, tem de haver empresas vivas. Estamos nesse plano, na base da Pirâmide de Maslow.

O modelo de serviço público misto é necessário para assegurar empréstimos a custo zero como instrumento de política monetária de regulação da massa monetária em circulação na economia porque assistimos ao mercado a ‘impor’ margens excessivas e a deixar o Governo capturado numa assimetria de informação (que na segunda parte se procura desmantelar). Este é o modelo mais equilibrado porque, resolvendo o problema, não exclui nenhum player do mercado, admitindo os bancos privados a prestar o serviço público de transferência de liquidez de emergência, e garantindo que há um certo nível de liberdade de concorrência,

O Estado é dono da Caixa Geral de Depósitos e portanto pode incumbir por acto legislativo este banco do dever de proceder à concessão de empréstimos com a taxa de juro e a maturidade que entender, adequadas à função de ajuda urgente e não onerosa, financiando-se previamente junto do BCE nos volumes necessários e que conseguir.

Neste modelo não há nada de estranho ao modelo de economia de mercado. Numa economia de mercado, o mercado funciona enquanto funciona. E a intervenção pública serve para colmatar as falhas de mercado ou para assegurar o fornecimento de bens públicos que, ou por falta de incentivo privado não são fornecidos pelos particulares, ou porque têm características intrínsecas que não podem ser desempenhadas por sujeitos de direito privado.

O artigo 106.º TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) contempla a possibilidade de haver nos Estados-membros  empresas  encarregadas  da  gestão  de  serviços  de  interesse  económico  geral, caso em que as regras da concorrência serão aplicadas apenas na medida  em  que  a  [sua] aplicação  não  constitua  obstáculo  ao  cumprimento,  de  direito  ou  de  facto,  da  missão  particular  que  lhes  foi  confiada.

A entidade naturalmente apta a desempenhar essa função de interesse e serviço público é a Caixa Geral de Depósitos. Mas, para fazer o menor dano possível à concorrência, todos os bancos a deverão poder desempenhar, desde que o façam nos termos que assegurem a efectiva transferência de liquidez a custo zero.

De um ponto de vista institucional, os bancos comerciais devem ser vistos como mandatários do Governo. E as condições a que devem obedecer os empréstimos visados pelo BCE devem estar plasmadas num regime de elegibilidade.

O caso norte-americano

Nos EUA o Governo tem um organismo dedicado às PME. Chama-se SBA – Small Businesses Agency, e é o organismo responsável por administrar o PPP – Paycheck Protection Program.  Será o correspondente ao nosso IAPMEI. Mas nos fundos para o turismo foi o próprio Turismo de Portugal a passar os paychecks.

Neste modelo, as instituições financeiras (third-party lenders) actuarão sob a autoridade delegada da SBA.  Ou seja, são mandatários do Governo.  E importa notar que é pura e simplesmente proibido cobrar comissões aos beneficiários. As normas estipulam que será a SBA a pagar quaisquer comissões aos intermediários financeiros. O correspondente para nós será, como dizemos na Parte 2, que estes fees bancários, ou não têm cabimento em empréstimos a custo zero ou estão já ‘pagos’ pela margem bruta libertada pelas taxas negativas do BCE.

Quando é uma entidade governamental – a SBA – a fixar o valor da remuneração dos intermediários, é suposto ter um poder negocial juntos deles que os beneficiários dos empréstimos não têm, ainda menos na situação de necessidade em que se encontram.

O caso inglês

O plano de ajuda inglês irá, durante 12 meses, oferecer financiamento a 4 anos de, pelo menos, 10% da quota de mercado do participante na economia real, em empréstimos à taxa de juro ou muito próximo da taxa de juro do Banco de Inglaterra, que é presentemente de 0,1%. Ou seja, o participante terá a possibilidade de financiar até 10% dos empréstimos concedidos ‘à economia real’ à taxa de 0,1% no âmbito do TFSME. (0,1% do Banco de Inglaterra compara com -0,75% do BCE…).

No sistema inglês o acesso ao financiamento de socorro consagrado no Term Funding Scheme for SMEs – TFSME (Esquema de Financiamento Temporário de Pequenas e Médias Empresas, tradução da autora) depende da elegibilidade do banco candidato. Essa elegibilidade está condicionada ao preenchimento de condições formais e procedimentais e mais ainda: a elegibilidade e o contínuo acesso ao TFSME estarão também dependentes de o participante actuar, na opinião do Banco de Inglaterra, de boa fé e de forma consistente com os objectivos do TFSME.

Para fiscalizar os participantes, estes ficam ainda adstritos a obrigações de reporte de dados e de certificação da informação reportada.

Os empréstimos a taxas excessivas como auxílios de Estado ilegais

A Comissão (Comunicação relativa ao regime temporário de medidas estatais de suporte à economia no actual surto de COVID-19) foi muito clara a dizer que os auxílios dos Estados às empresas, na forma de garantia de empréstimos, aprovados ao abrigo do artigo 107.º/3, b) TFUE, e que são canalizados pelos bancos como intermediários financeiros, beneficiam essas empresas directamente, e não têm como objectivo preservar a viabilidade, liquidez ou solvabilidade dos bancos.

E esclarece que, se os bancos vierem a precisar de auxílios de apoio à liquidez ou de compensação pela deterioração da qualidade dos seus activos, esses auxílios teriam de ser notificados e aprovados num processo próprio e com diferente base legal.

As instituições de crédito e outras instituições financeiras devem, na mais larga medida possível, passar as vantagens da garantia pública ou de taxas de juro subsidiadas para os empréstimos aos beneficiários finais. Está claro que uma taxa de juro que descaracterize a função de canalizar liquidez (na expressão do texto em inglês channelled) para a economia, transformará tais empréstimos em auxílios aos bancos, e, como tal, ilegais, o que desencadeia a obrigação de devolução.

A Comissão explicita como concretizar este conceito de canalização dos benefícios para as empresas especificando que o intermediário financeiro deve ser capaz de demonstrar que assegura que as vantagens são passadas, na maior extensão possível para os beneficiários finais, sob a forma de maiores volumes de financiamento, portfolios com mais risco, menores exigências de colaterais, prémios de garantia mais baixos, taxas de juro mais baixas. Ainda acrescenta que quando exista uma obrigação legal de extensão da maturidade de empréstimos pré-existentes a PMEs, não pode ser cobrada nenhuma taxa de garantia.

Portanto, um dos indícios de desempenho correcto da função de canalização desta liquidez em respeito das condições legais aplicáveis reside na prática de taxas de juros inferiores às praticadas.

Numa rápida pesquisa ao histórico das taxas de spread praticadas pelos principais bancos em Portugal em 2018, 2019 e ainda no início de 2020, antes do surto epidémico, variaram entre 1% e 1,50%. Este é exactamente o mesmo spread que a banca pretende praticar e que o Governo, para já, aceitou.

Portanto, se os auxílios estatais consistentes na garantia pública dos empréstimos e na subsidiação das taxas de juro forem de facto transformados em benefícios para os bancos comerciais, com a manutenção de spreads ao nível pré-ajudas e as (mesmas) comissões de gestão, deixarão então de ser benefícios para as empresas e passarão a ser benefícios para a Banca, e nessa medida serão ilegais por carecerem de autorização da Comissão.

Se a Banca vier ela própria a precisar de auxílios, deverão essas necessidades ser apreciadas enquanto tal. Portanto, argumentos de deterioração da situação dos bancos para justificar a necessidade de manter as taxas do mercado pré-pandemia não devem colher; devem ser usados como fundamento para pedir outros auxílios à Comissão.

O enquadramento dos empréstimos numa execução de boa fé – pelos bancos e pelos clientes – do plano de ajuda

É util referir um caso que veio há poucos dias ao conhecimento pessoal da autora, de um pessoa que é sócia de uma sociedade por quotas unipessoal que relatou ter sido contactada pelo seu banco, por iniciativa deste, tentando persuadi-la a contrair um empréstimo no valor de € 50.000,00 com uma taxa de juro de 3% e uma carência de um ano. A referida empresa não solicitou o empréstimo, não precisa dele, recusou e mesmo assim o banco insistiu na tentativa de persuasão da cliente.

Esta conduta merece três apontamentos.

  • Primeiro, de um ponto de vista macroeconómico, a ser generalizada, levará ao desvirtuamento censurável do propósito do esquema de socorro à economia porque oferece apoio a quem não precisa, não pediu e o recusou até; e levará à frustração da finalidade dos apoios, pois desviará fundos de quem realmente necessita.
  • Segundo, enquanto prática de um banco, deve desqualificar o aumento de volume de financiamentos como indício de que o banco procedeu à ‘canalização’ das ajudas através do aumento do volume de financiamentos e sujeitar o banco ao escrutínio da legalidade dos empréstimos à luz das regras sobre auxílios de Estado.
  • Terceiro, é um forte indício, de que os dirigentes políticos devem retirar consequências, de que os bancos têm um forte interesse comercial na taxa de 3% para aumentar exponencialmente o seu volume de negócio financiando-se no BCE apoiados pelas garantias do Estado, gerando lucros por causa de uma calamidade humana que se está a abater sobre os seus concidadã

Também é preciso proteger os objectivos reais do plano de ajuda na direcção contrária, ou seja, contra aproveitamentos destas linhas de financiamento a custo zero pelos clientes para amortizar empréstimos pré-existentes a taxas de juro normais, pré-COVID, e não para resolver problemas de tesouraria da empresa associados à pandemia.

Em resumo…

Seria de criar rapidamente uma task force com a incumbência de alterar o protocolo já firmado com a Banca por constatação da sua insuficiência, e de montar o enquadramento regulatório que qualifique estes empréstimos a custo zero como função de interesse público, investindo com a máxima urgência a CGD na função de a desempenhar, fixando um ‘caderno de encargos’ com as condições de elegibilidade das instituições financeiras para aceder à garantia pública e às taxas de juro subsidiadas pelo BCE como entidades delegadas (intermediárias) do Estado, incorporando um critério de boa fé e de conformidade da sua actuação e dos beneficiários com os objectivos do plano de ajuda, a verificar a todo o tempo, e consagrando obrigações de reporte de informação contabilística e certificada, clarificando os critérios de verificação a posteriori da elegibilidade continuada, retomando os mesmos que a Comissão indicou.

Amanhã, parte II: desmontar os 3%