Depois de um período de falta de medidas de excepção relativas ao custo das rendas comerciais, no dia 26 de Março o Governo anunciou pela primeira vez em conferência de imprensa ter adoptado uma medida destinada a endereçar este problema. Contudo, a medida peca por extraordinariamente insuficiente e, pior até, acaba por prejudicar a tutela jurídica que o próprio Código Civil confere aos inquilinos.

É compreensível que a rapidez com que a situação presente obriga o Governo a actuar leve a soluções mais apressadas, que depois são aperfeiçoadas, como o Governo acabou de fazer, e bem, para o lay-off.

A razoabilidade económica e social

O mesmo aperfeiçoamento se impõe fazer ao regime excepcional de mora anunciado, em sede de processo legislativo que se segue à iniciativa do Governo. Limitar a medida excepcional ao simples alargamento do prazo em que o inquilino incorre em mora é:

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1º Insuficiente. As rendas representam entre 10 e 15% da totalidade dos custos fixos de um estabelecimento de restauração. Os custos laborais representam cerca de 30%. Portanto, o valor apropriado por um único agente económico da cadeia de valor  deste sector (o inquilino) ascende a metade da totalidade do valor gerado e transferido para os trabalhadores. A paragem total da laboração acarreta para o inquilino uma perda de 100% da receita e da sua própria remuneração (lucro); mesmo depois de retomar a actividade, e este custo mantendo-se após o termo do novo prazo de vencimento, o inquilino terá que gerar lucros líquidos suficientes para repor, retroactivamente, um custo desta dimensão relativa, multiplicado por um número de meses ainda por determinar, lembrando que o inquilino-empresário-empregador terá que suportar pessoalmente ou com recurso a fundos próprios ou a endividamento, se o obtiver, vários outros custos fixos. É imperioso que os senhorios sejam chamados a dar o seu contributo para a redução dos custos fixos deste sector.

2.º Iníqua, em termos de justiça redistributiva. Na cadeia de valor, todos ou quase todos perdem: os estabelecimentos perdem 100% das receitas e os empresários a totalidade da sua própria remuneração (lucros líquidos); ainda assim têm que desembolsar a totalidade, ou 30% de dois terços dos salários dos trabalhadores caso consigam qualificar para lay-off; os fornecedores perderão parte dos seus créditos por impossibilidade de os estabelecimentos pagarem fornecimentos e encomendas anteriores à pandemia; serão forçosamente negociados perdões de dívida; mesmo com todos os apoios, será inevitável algum desemprego… Posto isto, cabe perguntar: a que título os proprietários deverão ser privilegiados com uma blindagem à recessão, suportando uma singela dilação do vencimento das rendas de que são credores?

3.º Desfasada do mercado. Nos últimos 3 anos as rendas subiram mais de 25% no mercado em geral. Nalgumas regiões, muito mais que isso. Este crescimento especulativo tem permitido remunerações extraordinárias aos proprietários, alimentadas por um volume de negócio criado pelos seus clientes-inquilinos. Estes, aliás, normalmente realizam obras de recuperação e melhoramento dos imóveis, a expensas suas. Admitir que a única correcção económica às rendas é a dilação da mora, é garantir remunerações especulativas num mercado em plena e sem precedentes recessão, por todos comparada a um cenário de guerra. Ou pior que de guerra, porque em guerra há actividades económicas que prosseguem. Ou, dito de outra forma: alguma vez ruas desertas e cidades-fantasma permitem sustentar rendas especulativas? Isso seria o mesmo que atribuir um prémio de recessão a um dos elementos de uma cadeia de valor, quando todos os seus outros elementos estão e irão durante bom tempo lutar contra o colapso total.

4.º Desproporcional, na economia dos contratos. Num contrato oneroso, que traz vantagens e desvantagens para ambas as partes, o risco da frustração da finalidade do contrato deve ser distribuído equitativamente pelas duas partes; manter intacta a renda no seu valor é fazer suportar o risco integralmente pelo inquilino. O que nos traz para o último ponto.

5.º Restritiva da tutela jurídica geral de que os inquilinos beneficiam por força do regime geral dos contratos consagrado no Código Civil português. A parte num contrato que é lesada por uma alteração fundamental das circunstâncias em que as partes basearam a vontade de contratar tem o direito (potestativo) a modificar de forma equitativa a prestação a que está obrigado. Essa modificação equitativa envolve natural e inelutavelmente a adequação do seu valor, e não apenas a dilação do pagamento, como se se apagassem meses de total ausência de actividade.

O Direito Aplicável – o direito à modificação da obrigação de pagamento da renda – o caso da restauração e hotelaria

A incidência da pandemia Coronavírus em Portugal determinou a quebra abrupta e depois total, da afluência (voluntária) de clientes aos restaurantes e outros estabelecimentos HORECA, durante o mês de Março corrente. Numa segunda fase, a pandemia conduziu à proibição legal de abertura destes estabelecimentos (imposta pelo Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, do Conselho de Ministros, que executou o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março que decretou, ineditamente em quase 50 anos, o estado de emergência em Portugal).

Muitos estabelecimentos de restauração funcionam em imóveis arrendados. Estes contratos de arrendamento podem ser modificados, designadamente a renda reduzida ou suspensa, com fundamento em alteração fundamental das circunstâncias, por acto unilateral da parte afectada, sem dependência de intervenção judicial, ao abrigo do artigo 437.º do Código Civil, que dispõe o seguinte (numa subsecção dedicada à ‘Resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias):

“Artigo 437.º

Condições de admissibilidade

  1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
  2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.

 Entre muitos outros, considere-se a explicação dos requisitos e sentido desta norma no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no processo n.º 1097/12.6TBMGR.C1:

“I A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal, e que (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual, não estando coberta pelos riscos do negócio.

II – A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes.”

Os contratos de arrendamento comercial cuja finalidade consista no funcionamento de estabelecimento de restauração ou hotelaria têm como óbvio pressuposto fundamental servir clientes. A pandemia conduziu à quebra praticamente total da afluência voluntária de clientes, por medo de contá Alguns dias depois, a decretação do estado de emergência determinou a impossibilidade legal de desempenho da função económica do contrato. Está, portanto, duplamente verificado o primeiro requisito descrito em (i) supra, de frustração dos pressupostos em que as partes fundaram a decisão de contratar, nos termos em que o fizeram. Ressalva-se apenas a possibilidade de o contrato de arrendamento em concreto poder conter uma cláusula que afaste a relevância da ‘alteração fundamental das circunstâncias’, ou cláusula rebus sic stantibus. Em tal caso, se se concluísse que tal cláusula era válida, o que não é líquido, ficaria precludido o direito do inquilino à modificação da obrigação de pagamento da renda.

Nestas circunstâncias, a exigência integral da renda ao inquilino afectará gravemente os princípios da boa fé. O contrato de arrendamento é um contrato oneroso, o que significa que ambas as partes retiram um proveito económico, com benefícios e sacrifícios recíprocos: o senhorio obtém o proveito económico da renda e abdica da fruição do imóvel; o inquilino obtém o proveito económico associado à fruição do espaço pela oferta de serviços de restauração ou hotelaria e remunera por isso o senhorio. Ora, manter a obrigação de pagamento da renda intacta quando se torna material e legalmente impossível a realização da função económica do contrato para o inquilino, contraria ostensivamente os mais elementares ditames da boa fé, já que implicaria manter o benefício económico do senhorio não obstante a frustração do benefício do inquilino (tornando gratuito, ou uma liberalidade, um contrato oneroso na sua essência.

Esta pandemia é de tal modo inédita, grave, imprevisível e estranha às flutuações previsíveis da actividade que se não pode considerá-la, e aos seus efeitos, como fazendo parte dos riscos normais do negócio,de acordo com os usos e costumes do comércio. Ou seja, é um risco não coberto pelos riscos próprios do contrato.

Portanto, os inquilinos de estabelecimentos de restauração e hotelaria que estejam nas circunstâncias descritas podem exercer o direito potestativo à modificação do contrato, de acordo com juízos de equidade.

    1. O conceito de equidade significa que a modificação da obrigação de pagamento de renda deve sofrer as alterações proporcionais à afectação do benefício económico que o contrato se destina a garantir ao inquilino.
    2. Este direito potestativo à modificação do contrato não é um direito de exercício judicial; é uma faculdade da parte lesada de produzir, inelutavelmente, efeitos jurídicosna esfera jurídica do senhorio (leia-se, a modificação temporária do valor da renda, ou mesmo a sua suspensão integral): ou seja, sem necessidade de acto de terceiro, incluindo a aceitação da contraparte, e sem necessidade de intervenção judicial.
    3. Portanto, os inquilinos podem, desde que não estejam em mora no momento em que a alteração das circunstâncias de verificou (cfr. artigo 438.º CC), licitamente, com fundamento no artigo 437.º do Código Civil, salvo cláusula contratual em contrário, notificar os respectivos senhorios da modificação da obrigação de pagamento da renda, de forma (tempo e valor)proporcional à quebra de actividade imputável à pandemia e ou à proibição legal de abertura, e com uma repartição equitativa do risco.
    4. É razoável considerar que na redução ou suspensão do pagamento de renda devam ser descontados, proporcionalmente, eventuais compensações estatais ou apoios financeiros dados aos inquilinos que se possa considerar destinarem-se a compensar essa quebra. (Os apoios ao pagamento de salários não se destinam a subsidiar o pagamento de rendas.)
    5. Dado que o critério que preside à modificação da prestação é o da equidade, o risco poderá ser repartido em partes iguais por ambas as partes, ou adaptadoao peso relativo do custo da renda nos custos operacionais totais do estabelecimento. Contudo, em zonas em que as rendas estejam empoladas pelos anos recentes de extremo aumento do fluxo de turistas, a repartição do risco pode ser maior para o proprietário e a redução da renda ser, por conseguinte, superior a 50% pelo período de inactividade ou contracção da actividade.

O Decreto n.º 2-A/2020 veio afastar expressamente o direito de resolução contratual pelo inquilino com fundamento na obrigação de encerramento do estabelecimento por força da declaração do estado de emergência, afastando assim o artigo 437.º do CC na parte em que este preceito confere à parte lesada (o inquilino) o direito de resolução contratual. (E também veio impedir o senhorio de impor a desocupação dos imóveis arrendados com fundamento no encerramento dos estabelecimentos).

Artigo 10.º

Efeitos sobre contratos de arrendamento e outras formas de exploração de imóveis

O encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo do presente decreto não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.

Se o legislador teve o cuidado de afastar o direito potestativo do inquilino à resolução contratual com fundamento na decretação do estado de emergência e inerente proibição de abertura do estabelecimento, infere-se que não quis afastar o direito à modificação equitativa da prestação.

A norma excepcional desejável

O recurso em massa pelos inquilinos do sector da restauração e hotelaria à faculdade consagrada no artigo 437.º do Código Civil irá gerar grande instabilidade no comércio jurídico e grave conflitualidade entre senhorios e inquilinos, afectando, em cadeia, trabalhadores e suas famílias, fornecedores, clientes, e, com isso, as condições de retoma da actividade económica. Por isso, é de toda a conveniência o Governo intervir para garantir a segurança e certeza jurídicas e mitigar o potencial de conflitualidade num sector tão crítico para a economia nacional e do qual tantos empregos dependem.

Por isso, o Governo deve consagrar legislativamente as regras que devem presidir à modificação das rendas na restauração e hotelaria, extensível, pelo menos, aos estabelecimentos que devem ser encerrados por força do estado de emergência.

Afigura-se razoável consagrar as seguintes regras:

  • o direito dos inquilinos à redução do valor das rendas em 50%, por regra, pelo período de, pelo menos,três meses (Abril, Maio e Junho de 2020);
  • uma dilação do prazo de vencimento dessas rendas reduzidas, à luz da proposta do Governo, que ainda se não conhece no momento em que este texto foi escrito, e podendo os inquilinos proceder ao seu integral pagamento em prestações iguais mensais proporcionais ao número de meses até final de 2020.
  • o acompanhamento da aplicação deste presente regime e sua eventual revisão no prazo de três meses.