Em casa da minha mãe não havia chaves nas portas. Tenho ideia de que se teriam perdido quando as portas foram restauradas. Ou estavam lá e eu não me lembro de as ver. Sei que não se usavam. Uma porta fechada era território demarcado, acessível apenas com autorização. Bater a uma porta fechada antes de entrar é uma regra de que me lembro desde que tenho nós nos dedos. Batia e esperava. Anunciava-me. “Um momento!”- eu parava, quieta, até a porta se abrir. “Entra” – e eu, zás, entrava.

A possibilidade de fechar a porta era um direito adquirido com a idade. Começou a tomar forma mais ou menos na altura em que me entendi como pessoa. Agora sei que foi quando a necessidade de estar só era sinónimo, não de abandono, mas de aprender, de consciência. Era eu. Eram os meus pensamentos. Era a liberdade de os poder guardar para mim. E num crescendo materializado na passagem do tempo, nos diários secretos, na música ouvida, nos livros lidos pela noite dentro, nos momentos em que não queria ver ninguém nem ser vista. Esse é o espaço da existência onde nos podemos fechar connosco. A verdadeira protecção de dados. A privacidade.

A porta fechada ensinou-me que posso partilhar o que e quanto quiser, onde e com quem quiser. Esperava que o Estado garantisse o mesmo no cumprimento da lei. Não o faz. Espreita, abre e invade a pretexto de uma manifestação ou de um vírus. Não protege nem salvaguarda. Seja numa repartição onde as “regras” obrigam a que a nossa história clínica, ou financeira, seja gritada através de acrílicos e máscaras, a dois metros de distância da funcionária, ou através do protocolo camarário que encheu as páginas dos jornais.

Assistimos, caso após caso, dia após dia, à degradação política do PS.

Quem pensa perde a confiança. Quem aceita perde os direitos.

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