As guerras de Religião foram um tempo particularmente cruel da História da Europa, em que, em nome de Deus, do mesmo Deus, católicos e protestantes se guerrearam, se mataram, se torturaram, se exterminaram, se condenaram reciprocamente às piores penas deste mundo e do outro. E fizeram-no paralelamente, ou seja, nuns Estados o poder católico proibiu, preventivamente, as religiões reformadas e perseguiu os que as seguiam; noutros, os protestantes fizeram o mesmo aos católicos; noutros, divididos, foi a guerra civil.

Em Espanha e em Portugal, a Inquisição actuou preventivamente, contra os que se dedicavam “a espalhar e pregar os erros da predita seita luterana e de outros hereges”, como o agostinho Frei Valentim da Luz, que sustentara doutrinas contrárias à ortodoxia, como as seguintes: “Que o purgatório não tinha lugar na Sagrada Escritura” e que as “esmolas deviam ser dadas aos pobres e não à Igreja”.

Por essas e por outras heresias, frei Valentim, apesar de se mostrar arrependido (os inquisidores, desconfiados, não acreditaram na firmeza do propósito de emenda do frade), foi considerado “herege, apóstata, seguidor de Lutero, Calvino e de outros hereges”. E por isso “morreu de garrote” em Auto-de-fé, em 10 de Maio de 1553.

Mais sorte tinha tido, alguns anos antes, o dominicano Fernão de Oliveira, o celebrado autor da primeira Grammatica da lingoagem portuguesa, de 1536, acusado de ser simpatizante das reformas anglicanas de Henrique VIII, Tudor, declarando que os reis não deviam obediência aos Papas. Oliveira foi condenado à prisão, mas foi posto em liberdade ao fim de três anos, por ordem do cardeal D. Henrique, mediante pedido de desculpas e acto de contrição público.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A Inquisição tinha vindo para Portugal em 1536, no reinado de D. João III, depois de muita resistência de Roma à sua instituição no Reino. Em Espanha, estava estabelecida desde 1478, quando os Reis Católicos a obtiveram do Papa Sisto IV, pela Bula Exigit sincerae devotionis affectus; ali, muito antes da Reforma, começou por ser uma forma de combate às práticas judaizantes, prosseguida com grande zelo identitário pelo Inquisidor-mor, confessor e conselheiro de Isabel de Castela, Don Tomás de Torquemada. E foi, acima de tudo, um instrumento da Coroa na prossecução da unidade de Espanha. Primeiro, até 1530, empenhou-se contra os judeus; depois contra os protestantes e mouriscos; mais tarde contra os hereges e as heresias em geral.

Complementarmente a estas actividades repressoras, funcionou uma Censura, que estabeleceu um Index Librorum Prohibitorum et Derogatorum – embora, curiosamente, a Censura política do Estado fosse mais dura que a da Igreja.  Também as bruxas e os tratos com o Diabo foram investigados e perseguidos, mas em muito menor escala do que na Europa protestante – Inglaterra e Alemanha. Os inquisidores espanhóis eram bastante cépticos nestas matérias, ao ponto de um deles comentar: “No hubo brujas ni embrujados en el lugar hasta que se comenzó a tratar y escribir de ellos”. E se, as execuções por bruxaria em Espanha foram trezentas, no mesmo período na Alemanha foram vinte e cinco mil.

Onde triunfou a Reforma, como na Inglaterra de Henrique VIII, nos países nórdicos e na Genebra de Calvino, foi a vez dos católicos serem perseguidos, os mosteiros fechados, os padres e religiosos relapsos executados. Em 1535, na Inglaterra Tudor, os monges da cartuxa de Londres foram enforcados e esquartejados na praça de Tyburn; São Thomas Moore também foi supliciado por não aceitar a legitimidade do divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão e o seu casamento com Ana Bolena. O Papa São João Paulo II declarou-o patrono dos políticos, revelando grande sabedoria (só um político virtuoso como São Thomas Moore poderia chamar à santidade uma classe que quase sempre aceita quase tudo, desde que lhe convenha). No tempo de Maria Tudor, a Católica, (ou a Sanguinária, para os inimigos) foi a vez dos mártires protestantes – 275; com Isabel I chegou, outra vez, a vez dos católicos e mais de mil foram mortos. Dos católicos martirizados entre 1535 e 1679, 40 foram beatificados e canonizados pelos papas Leão XIII, Pio XI e Paulo VI.

Em França houve guerras civis entre católicos e protestantes, com a terrível matança de Saint-Barthélemy, em 1572, quando milhares de huguenotes foram assassinados, guerras que duraram até ao Édito de Nantes, de Henrique IV.

A ideologia como religião

A partir da Revolução Francesa e sobretudo da Revolução bolchevique e das reacções europeias à revolução bolchevique, as ideologias políticas passaram a ocupar o lugar das crenças religiosas, nos altos ideais proclamados e rasteiramente prosseguidos e na mobilização dos homens para a luta. E de uma forma total, totalitária.

Nos limites, o comunismo soviético, o hitlerismo e depois o maoísmo revelaram um extremo fanatismo, introduzindo na luta política o sentido da aniquilação, uma espécie de mors tua vita mea, quer dizer, a minha vida depende da tua morte.

A isto acrescentou-se o maniqueísmo, isto é, a ideia de que o inimigo político, hostes, é não só inimigo político, mas um ser profundamente perverso, Untermensch, sub-humano, que deve ser impedido de falar, de escrever, de circular e, em último caso, de viver.

Que este espírito de perigosidade implícita fosse, tradicionalmente, invocado pelos reaccionários para proibir, para perseguir, para prevenir a difusão de doutrinas subversivas da ordem e da autoridade, não é de espantar.  Ou sequer que, nos anos que se seguiram à Revolução Francesa as generosas e liberais ideias do Iluminismo, uma vez no poder, se precipitassem nos excessos apocalípticos das execuções em massa, ao Terror na guilhotina, nos afogamentos de Nantes por Carrier, na eliminação por classes de padres e aristocratas, ao genocídio da Vendeia. Também as hecatombes do comunismo do século XX estavam já implícitas nos breviários marxistas-leninistas como caminho natural para a instauração do paraíso na terra; ou o holocausto hitleriano dos Untermensch para a consolidação e protecção do Terceiro Reich.

A nova Esquerda inquisitória

O que é de estranhar é que uma nova esquerda, inclinada para o revisionismo humanista e humanitário, uma nova esquerda inspirada numa reencenação, simultaneamente mais superficial e mais masoquista, dos ensinamentos do marquês de Sade e de outros libertinos, numa releitura mais intensa, extensiva e volante do binómio opressor/oprimido de Marx, numa revisão mais criativa da Vulgata de Estaline e dos seus métodos, se proponha adoptar, em pleno século XXI, práticas inquisitoriais. Práticas de suspensão preventiva, de indiciação por categorias de malvadez e de perigosidade latente de todos os que considera obstáculos à Nova Fé. Ou que vai considerando, ao sabor das conveniências ou de um posicionamento mais vantajoso no mercado, das ideias e das políticas.

Assim, um “pensador de Extrema-Direita” quando fala ou se prepara para falar, seja sobre o que for, vai inevitavelmente “emitir discurso de ódio”, pelo que deve ser imediata e veementemente pré-excluído pelos auto-proclamados inclusivos. Ao contrário do comum dos mortais, parece que estes comissários políticos da inclusão são mesmo seres excepcionais, tanto que têm o dom da fluidez e direito a “pronomes pessoais”, podendo até usar o plural majestático (e ai do súbdito que os não trate com a devida reverência); possuem também antenas hiper-sensíveis para detectar o mais ínfimo cisco de ofensa, de incorrecção, de intolerância e de não-inclusividade no olho alheio.

Esta “nova esquerda”, que nos quer impor as suas intermináveis letras, os seus pronomes indefinidos, os seus códigos de escrita e censura, as suas ladainhas, as suas infindáveis inclusões e exclusões  (desde banir os clássicos a cortar o trânsito ou furar pneus para salvar o planeta);  esta esquerda que quer silenciar os dissidentes, não tem nada, mesmo nada, que ver com aquilo que, por muito tempo, deu prestígio e razão moral à Esquerda – a defesa dos trabalhadores, a justiça social, a correcção das desigualdades de nascimento e fortuna,  a defesa da liberdade de expressão.

Os seus apóstolos e discípulos – e não excluo que entre eles não haja gente crédula e de boa-fé – parecem ter herdado dos progenitores ideológicos só o pior: dos libertinos, o sado-masoquismo; dos marxistas, a dogmática persecutória; e do cristianismo, os métodos e o zelo do grande inquisidor das Espanhas e “martelo de hereges”, Don Tomás de Torquemad@.