Há três anos ele ainda andava bem para fazer pequenos passeios. Pediu-me para o levar a um armazém recém construído nos Olivais (Sul) perto de casa, pois queria ver “as novas construções modulares que se fazem sem tijolo e sem argamassa. São blocos que se juntam como peças de Lego”. Lá fomos, os dois, num passeio com paragens para descansar, pois não queria ir de carro. E assim fiquei a conhecer, através deste senhor com 98 anos de idade, esta inovação no sector da construção.

Tinha 90 anos quando ofereceu a si próprio um PC e fez um curso básico  de Windows. Pediu-nos para lhe criarmos um e-mail e um perfil no Facebook. Também navegava no Google e no YouTube. Teve a candura de nos dizer que tinha procurado no Facebook alguns amigos mas não tinha encontrado nenhum.

Adquiriu uma fotocopiadora e um scanner e este pequeno escritório permitia-lhe fazer a sua “administração” (rendas, contas bancárias, reuniões e actas de condomínios). Só não conseguiu incorporar a cultura do imediatismo que permite a resolução de alguns assuntos através de mensagens por email e por whatsApp. Continuava a escrever longas cartas que ia depois deitar no marco do correio. E arquivava todas as despesas em papel, em vários dossiers que ainda hoje se perfilam numa das estantes da sua escrivaninha. Queria manter  tudo em papel, imbuído da sabedoria e da prudência das pessoas com muita idade. Apesar de saber que as finanças portuguesas se tinham transformado num big brother  que acompanha todos os movimentos dos cidadãos.

Tinha uma capacidade de admiração pelas coisas novas, pelo saber, pelas maravilhas da natureza, belos bons momentos que a vida lhe proporcionava. E quando fez 100 anos ainda mergulhou no mar, como tanto gostava e suspendia a respiração ao ver um pôr do sol. Maravilhoso, era o adjetivo que saía constantemente da sua boca. E era esta capacidade de se deixar  surpreender como um menino que tornava jovem este idoso centenário e fazia dos netos e sobrinhos os seus maiores admiradores.

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Menino de pé descalço proveniente de uma pequena e banal aldeia das beiras, onde trabalhou na agricultura familiar, terminou a quarta classe,iniciou-se no comércio aos 14 anos,como empregado de pequenas lojas e emigrou para S.Tomé, onde se estabeleceu como gerente de um estabelecimento que importava e vendia de tudo “desde um lápis até um automóvel”. Aí trabalhou durante 20 anos e viveu na casa que é a capa do livro Equador  (autor: Miguel Sousa Tavares).

Pertenceu a uma geração habituada a poupar para “prevenir o futuro, a velhice”. Quando regressou de África conseguiu completar os estudos que lhe permitiram o acesso a um curso de contabilidade. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Teve uma fugaz experiência, mal sucedida, como empresário, em parte por causa da aliança que fez com um sócio que não era a pessoa certa e acabou a trabalhar como contabilista, por conta de outrem, numa empresa de tacos. Trabalhou muito, as férias eram modestas passadas na casa da aldeia, junto da família e podem contar-se pelos dedos as noites que passou num hotel. Assim construiu um pecúlio que lhe permitiu fazer pequenos mas vários investimentos imobiliários.

Era um homem magnânimo. Deu a cada um dos seus dois filhos e três netos um apartamento no centro da cidade (Lisboa) o que fez deles jovens privilegiados numa época em que  a habitação é escassa, os preços inacessíveis  e os jovens são obrigados a permanecer até muito tarde em casa dos pais.

Nas relações sociais era um homem muito generoso. E honesto, com uma candura que o levou a auto denunciar-se  de uma falha negligente, de alguns escudos, que cometeu na entrega da declaração do IRS. Foi há duas décadas, quando as Finanças não tinham a fama de eficácia e zelo que têm actualmente.

A  grande paixão da sua vida foi a sua esposa. Viveu com ela durante 65 anos. E conseguiu prolongar a longevidade e arrastar a velhice para poder acompanhá-la e cuidar dela. Pouco tempo antes de morrer dizia que tinha acabado de chegar de Fátima. Que Nossa Senhora lhe estendeu a mão dizendo que era hora de partir mas ele tinha respondido que não podia partir porque tinha que cuidar da sua mulher. Ao que Ela terá respondido que não precisava pois tinha uma boa filha. Arrastou-se em casa e nos hospitais, com pneumonias sucessivas durante mais 3 meses.

Foi vencido pela idade (102 anos) e pela “covid” que contraiu em Agosto de 2023, apesar de ter as vacinas todas em dia.

Este homem bom era meu pai. Um exemplo e uma inspiração de uma geração de ouro que está a desaparecer e que dará lugar a uma nova ordem social.