Em junho de 2021, escrevi pela primeira vez um artigo de opinião, sobre uma temática que me preocupou como clínico e como futuro pai, no artigo intitulado “Geração tablet, a nova chucha do “neném” e da “galera”. Nele chamava à atenção sobre como o excesso de tempo de ecrã, nomeadamente quando este é usado integralmente em programas em Português do Brasil, está a influenciar e a deteriorar o desenvolvimento da linguagem das nossas crianças, onde relatei alguns exemplos de crianças vistas por mim em consulta cuja língua mãe, (peço ao leitor que não considere isto um exagero, mas sim a realidade observada) é o Português do Brasil, quer na utilização do vocabulário, como na fonética.
A publicação do artigo num jornal nacional online teve como objetivo fazer chegar a mensagem à população geral e alertar sobre os caminhos e decisões que estão a ser tomadas nos últimos tempos. No entanto, será que foi suficiente para mudar algumas mentalidades e visualizarmos algum tipo de efeito mensurável?
Pois bem, neste artigo dirijo-me à comunidade Médica, dois anos após a publicação descrita anteriormente, com o objetivo de fazer uma reflexão das minhas experiências pessoais desde esse período e, também, para estimular os colegas a realizar uma reflexão pessoal e partilhada sobre o que foi feito e o que ainda se pode fazer para gerir e combater este problema, que corre o risco de se tornar num “novo normal” de magnitude incontrolável.
Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2022, realizei o estágio curricular obrigatório de Saúde Infantil, onde tive oportunidade de discutir estes assuntos com vários especialistas. O consenso era geral entre as várias opiniões: a problemática da facilidade de acessibilidade e do excesso de tempo de ecrã na população infantil é um problema sério, que começa a demonstrar algumas mudanças de comportamento e consequências: desde a questão da dependência do tablet, telefone ou outro ecrã para a criança realizar as suas refeições, adormecer, colaborar no banho ou para simplesmente não fazer as birras do dia a dia, problemáticas já discutidas noutras instâncias.
Dentro de todos estes problemas nomeados, aquele que exibe a componente mais marcada e duradoura na opinião dos colegas é a da linguagem, com vários relatos de colegas em vários contextos a depararem-se com crianças dependentes destes aparelhos, com uma maior prevalência de duas situações distintas: a primeira prendendo-se com as crianças com os quais não conseguem estabelecer contacto nem realizar uma correta avaliação, por se “fecharem no seu mundo” com o seu ecrã, negligenciando qualquer interação ou colaborando com as tarefas pedidas, e a segunda, prendendo-se com as crianças que apresentam um vocabulário e fonética baseada em estrangeirismos, chegando a dominar ou a ser parte integral de toda a linguagem da criança, manifestadas mais frequentemente por uma criança fluente em Português do Brasil.
Após estas trocas de ideias, continuei o meu estágio onde me fui deparando mais frequentemente com esta realidade, num grau superior àquele que estava habituado. Recordo particularmente um episódio, em contexto de serviço de urgência, de uma criança na casa dos 6-8 anos em que após a ter questionado sobre as suas queixas apenas percebi parcialmente a sua resposta, não por algum tipo de deficit de linguagem ou cognitivo, mas sim pelo uso de várias expressões e dialeto repleto de estrangeirismos. Voltei a questionar a criança, de novo com resposta integralmente em dialeto estrangeiro, com a Mãe a observar, sem qualquer comentário ou estranheza.
Após abordar e resolver o problema que a levou a deslocar-se ao serviço de urgência, previamente à alta, questionei a Mãe sobre se notava algo de estranho em relação à linguagem ou dicção da sua filha, ao qual me respondeu que não denotava qualquer alteração. Posteriormente abordei a questão mais a fundo e expus alguns exemplos dados naquela consulta, as expressões utilizadas e a própria fonética, voltando a questionar posteriormente a Mãe sobre se continuava a denotar alguma alteração no discurso, que continuou a negar.
Na continuação da nossa conversa, decidi continuar a tentar investigar e perceber o contexto e o dia a dia da criança, explicado pela Mãe, que muito sucintamente se resumia a ver programas no tablet desde que chegava a casa, incluindo às refeições, até ir dormir, sem outro tipo de atividade ou interação, porque “fica mais contente e sossegada” exprimindo um fácies de satisfação pelo facto de ter conseguido encontrar uma estratégia de gestão do comportamento da criança ao mesmo tempo que faz a sua vida quotidiana sem grandes intercorrências, reagindo inclusive negativamente e com aversão às sugestões e ideias sobre moderar/racionar o acesso ao ecrã, não antevendo uma boa reação por parte da filha.
Posto isto, caros colegas, deixo em aberto a discussão sobre qual deve ser o nosso papel neste tipo de casos, até onde devemos ou podemos ir, que estratégias se devem propor aos pais e que metas/barreiras devemos traçar.
Serve também este artigo para encorajar e lançar o desafio para um reforço no estudo e investigação destes comportamentos, de modo a melhorar o nosso “know-how”, com o objetivo de realizarmos uma melhor prevenção e sensibilização à população geral sobre os erros que estão a ser cometidos nestas áreas e como os corrigir.
Ao focarmo-nos na origem do problema, surgem várias teorias: desde a questão da pandemia COVID-19, em que as crianças foram forçadas a permanecer no domicílio e reforçaram ainda mais o contacto com ecrãs. A questão do estilo de vida cada vez mais exigente para os pais, sacrificando o seu tempo de interação com os seus filhos. Outra questão, não menos importante, prende-se com o facto de os próprios pais se compenetrarem demasiado tempo nos seus próprios ecrãs, e sem se aperceberem, podem negligenciar outro tipo de contactos ou tarefas, passando esse mesmo exemplo aos seus filhos. Em todas estas situações existe o potencial de melhoria com o trabalho certo, no entanto, é necessário o entendimento com respetiva consciencialização e responsabilização por parte da população em geral, algo que não será propriamente fácil de acontecer no contexto em que hoje vivemos.
Em suma, não objetivei nenhum tipo de melhoria desde que escrevi o artigo anterior, podendo mesmo afirmar que o problema se tem deteriorado no passado recente partilhando, portanto, da opinião que algo tem e deve ser feito de modo a evitar o alastramento e normalização destes padrões. Como sugestão, já referi anteriormente a questão do aprofundamento do estudo destes comportamentos, sugiro também um aumento de investimento na componente da educação para a saúde e, não menos importante, lanço um apelo aos colegas para não desvalorizem estes achados e que tomem postura mais ativa na consulta, para que não se repitam episódios como o da Mãe que desvaloriza por completo os apelos do clínico e pensa que está tudo bem, porque “nunca ninguém lhe disse nada sobre o assunto”.