Longe (provavelmente não assim tão longe, tendo eu nascido nos anos 90) vão os tempos em que o “brincar” era um momento de aventura e aprendizagem dinâmica na vila do interior Norte de Portugal onde cresci. Todos os dias ia descobrindo algo novo, fosse na vinha com os meus pais, remexendo a terra (e provavelmente estragando alguma da colheita no processo), fosse com os outros miúdos vizinhos, explorando novos locais e brincadeiras, sempre de bicicleta e bola na mão.

Desde então a vida deu muitas voltas, com algumas janelas partidas a jogar futebol e idas ao hospital por quedas de bicicleta, chegando a 2021 como Médico Interno de Medicina Geral e Familiar, onde tenho a oportunidade de acompanhar de perto as crianças de hoje, o seu desenvolvimento e a influência das mudanças que os novos tempos nos trouxeram.

A problemática que me levou a escrever o meu primeiro artigo de opinião prende-se com este novo “brincar” dos dias de hoje, que em tudo é estranho para mim. As bicicletas e bolas da altura foram substituídas por tablets e smartphones, os jogos online substituíram as “futeboladas” e as conversas de grupo do “whatsApp”, os convívios e peripécias da infância.

O evento que me chamou a atenção e espoletou a vontade de escrever para todos os leitores foi o facto de algumas dessas crianças chegarem à consulta nas faixas etárias de desenvolvimento da linguagem com um idioma híbrido (exemplo: “gosto muito de ir à geladeira pegar sorvete”, com o respetivo sotaque brasileiro), enquanto alguns pais se maravilham, em simultâneo, com o facto de o tablet os manter ocupados e felizes com a sua “chucha tecnológica”, sem as birras habituais, desvalorizando a situação.

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Poderia falar sobre todas as implicações que este uso intensivo e desmedido de tempo de ecrã e o seu mecanismo de “recompensa instantânea” têm nas crianças como as dos distúrbios do sono, das relações interpessoais, desmotivação para participar noutro tipo de tarefas/brincadeiras ou até mesmo casos mais extremos, em que os cuidadores simplesmente não conseguem acalmar ou alimentar a criança sem o seu tablet a fazer de distração.

Em 2018, Collet e colaboradores1 realizaram um estudo caso-controlo levado a cabo em França, incluindo crianças de idades compreendidas entre os 3,5 anos e os 6,5 anos de idade onde foram analisados os comportamentos praticados durante a manhã, nomeadamente no momento antes da ida para a escola/infantário. Estas foram divididas em dois grupos distintos: o primeiro grupo, onde os pais encorajam a discussão do conteúdo visualizado com os seus filhos e estes não têm acesso a ecrãs de manhã e o segundo grupo, em que não é encorajada essa mesma discussão e lhes é dado acesso livre a ecrãs. No final, o estudo conclui que as crianças do segundo grupo tinham uma probabilidade seis vezes superior de desenvolver distúrbios da linguagem do que as do primeiro grupo.

No entanto, esse tema já foi, e muito bem, debatido em muitas outras instâncias, o que nos leva a refletir e a questionar sobre o porquê de ainda não se ter observado uma mudança de comportamento. Será inércia por parte dos pais? Incapacidade de filtrar informação correta e baseada na evidência nesta época de (des)informação abundante em que vivemos? Eu quero acreditar que muitas destas situações se devem a essa mesma (des)informação ao invés de um “comodismo fácil e rápido” que estas tecnologias proporcionam.

Embora ainda seja possível observar alguns exemplos equilibrados, como os pais que tentam arranjar um “meio-termo” ao selecionar apenas vídeos em português de Portugal, tudo o que basta são uns minutos de distração e a “reprodução automática” encarrega-se do desvio inevitável para as tão populares animações dobradas em português do Brasil, onde estes traços linguísticos híbridos são adquiridos.

Penso que será um esforço difícil e inglório tentar combater esta nova realidade, tanto pelo contexto pandémico onde somos confinados às nossas habitações e respetivo desencorajamento de estabelecimento de contactos sociais, como também pelo próprio quotidiano das famílias portuguesas na generalidade, onde grande parte do tempo e esforço é “engolido” pelas obrigações laborais, sobrando pouca disponibilidade física e mental para a produção do tempo de qualidade necessário para a educação plena e ideal dos jovens.

Portanto, que papel devemos exercer para inverter esta tendência? No que toca à comunidade médica, sou da opinião que será necessário um esforço extra na componente da educação para a saúde por parte dos cuidados de saúde primários referentes a esta temática crescente, investindo em estratégias de informação de fácil acesso e interpretação para pais e educadores, de modo a oferecer um “know-how” mais sólido e baseado na evidência de todas as implicações desta relação desproporcionada e potencialmente tóxica entre o abuso da tecnologia e o desenvolvimento infantil.

Em relação à comunidade em geral, está na hora de meter a mão na consciência e fazer um “mea culpa” coletivo. Basta olharmos à nossa volta, do jovem ao sénior, dedicando dias e noites aos seus “ecrãs”, passando o exemplo errado a esta nova geração. Não nos devemos esquecer que somos modelos durante 24 horas por dia para as nossas crianças e isso verifica-se tanto no que fazemos de bem como no que fazemos de mal. Desta forma, não temos (em muitos casos), nos dias de hoje, a autoridade moral para impor juízos de valor no que toca a esta temática.

Os ensinamentos e experiências passadas para as gerações mais novas são o pilar do desenvolvimento pessoal e tal como aprendi nos meus dias de bicicleta e bola na mão, os mais velhos devem ser sempre os mais respeitados e olhados como exemplo a seguir. Portanto “galera”, vamos fazer a nossa parte na educação dos nossos “nenéns”!

[1] Collet M, Gagnière B, Rousseau C, Chapron A, Fiquet L, Certain C. Case-control study found that primary language disorders were associated with screen exposure. Acta Paediatr. 2019 Jun;108(6):1103-1109. doi: 10.1111/apa.14639. Epub 2018 Dec 18. PMID: 30415471.