1 O mundo se interroga sobre este fenómeno do século XXI. Crianças vindas de Olossato fazem fila para entrar no Museu da Nacionalidade, com a estátua de Cabral de pé numa canoa à entrada.
No ensino, o trabalho produtivo e trabalhos oficinais voltaram a integrar o plano curricular; o português é ensinado como língua segunda, e já ninguém se acanha em exprimir-se na língua património comum da lusofonia. Um grupo de trabalho se debruça sobre a normalização do crioulo, essa língua-poesia. De aula de natação, também inserida no currículo escolar, expandiu-se para a escola de navegação, digna de um país que nasceu abraçado ao atlântico. Reabriu a escola de belas-artes e a escola técnica é um instituto tecnológico que forma engenheiros.
O Carnaval mais autêntico do mundo (que já tem o seu museu) e a Tina (tambor d’água) são patrimómio da UNESCO. E o parlamento, que já não tem nenhum analfabeto, acaba de aprovar o projecto de reabilitação de Bolama e a sua candidatura a património da UNESCO, cujo comité está prestes emitir o seu veredicto sobre o dossiê de Panu di Pinti (Pano de Pente).
Artistas plásticos e criadores são convidados assíduos de grandes exposições internacionais. N’tory Palan e os 3 N’kurbados já chegaram aos ecrãs. Eneida Marta, Manecas, Jujú, Karina, Patche di Rima e tantos outros já conquistaram os palcos mundiais. Os Tabanka Djaz estão em digressão pelas Antilhas, numa comunhão entre o continente berço e a diáspora longíngua. Os Super Mama Djombo continuam a melodiar as letras que saem das penas de Adriano Ferreira “Atchutchi”. Nada de mais natural para o chão do Korá, onde nascem dos melhores fazedores de música no mundo.
Nas receitas de grandes Chefs, a azedinha é a nova rainha das entradas e a manga de faca epiloga refeições gastronómicas regadas com gotas de fole fêmea.
No desporto, atletas nacionais conquistam medalhas nos jogos olímpicos, e a equipa nacional de futebol acaba de qualificar-se para o seu primeiro mundial.
O interior já produz tanto arroz que gera excedente para exportação. Grande parte da castanha de cajú é transformado e exportado para o mercado externo. Titina renasceu com sumos e compotas de frutas. Navios estrageiros com licença fazem a descarga do pescado na Doca de Purtu di Canua, antes de seguirem em cargueiros para destinos longínquos. A frota nacional abastece os mercados nacional e sub-regional com peixe fresco e a conserveira Nô Mar tem clientes em todos os continentes.
O programa integrado de infraestruturas cria vias rápidas ligando a capital às oito regiões. Bissau está a ser re-urbanizada, com saneamento básico. Foi construído um mercado de raíz, Bandim foi transformado num espaço verde, e a capital voltou a ser a cidade mais limpa da África Ocidental, ligada directamente, por via área, a várias capitais africanas e europeias.
O governo criou a agência do medicamento e estabeleceu a emergência médica, com ambulâncias e helicópteros. No edifício do 3 de Agosto, está a nascer um Centro Hospitalar de Unidades Especializadas, que vai ser gerido por profissionais competentes, e a rede de fibra óptica vai propiciar a telemedicina. É a morte anunciada da corrupta junta médica!
Foi criado o fundo de insularidade para financiar escolas, hospitais e actvidades de proteção ambiental nas ilhas e zonas costeiras do país. Está a decorrer um progama-piloto de gestão autárquica em nove cidades, antes das primeiras eleições locais.
Na terra de Cabral, a actividade política voltou a ganhar nobreza, e os servidores do Estado honram a memória da luta. A justiça é, finalmente, implacável com o peixe graúdo. Todos os cidadãos são cientes de que só com disciplina e trabalho sério é que se cria riqueza.. As sementes do progresso já estão a germinar.
2 Perdoe-nos, estimado(a) leitor(a), esta nossa mania de sonhar Setembro de olhos abertos. Um áudio inquietante trouxe-nos de volta à realidade que lá para os nossos lados continua dura e cruel.
Bissau não está a arder, mas vive em terror! Indivíduos encapuçados, a fazer lembrar os sicários da América Latina, silenciaram por meio de espancamentos e tiros, cidadãos, jornalistas, militantes partidários e deputados, e destruíram rádios privadas, perante a indiferença cúmplice das autoridades. E como a carcaça que restava da justiça foi desmantelada, esperava-se da casa do povo que exercesse a soberania popular, mas não o fez até à sua dissolução.
Lá para os nossos lados, a desfaçatez impera em todos os recantos das instituições do estado.
Aterra em Bissau um avião fantasma, e as autoridades dizem não saber de nada. A seguir, é encenada uma peritagem internacional, sem a selagem tempestiva do objecto suspeito, e… todos suspiram de alívio, a aeronave estava vazia.
Depois veio o 1 de Fevereiro. Sem importunar o leitor com surrealismos, cumpre-nos simplesmente reiterar os nossos sentimentos às famílias enlutadas que perderam entes queridos, inocentes, apanhados no fogo cruzado de uma int(v)entona vendida ao mundo diplomático como tentativa de golpe militar, quando os próprios militares se encontravam nas respectivas casernas.
Com a educação e a saúde há muito a apanhar pó no museu dos abandonados, as autoridades são muito dadas a paparicos com militares e polícias, tão recorrentes são as cerimoniais de entregas equipamentos vários, que mais não são do que um mecanismo de controlo sobre os “fiéis da balança”, que, lisonjeados, de quando em vez, vão restituindo os mimos com serenatas no palácio, num ambiente festivo a somente alguns metros de distância da antecâmara do cemitério chamado hospital, onde, engolidos pela escuridão, pacientes mal diagnosticados e estendidos em pedaços de colchão soltam gemidos derradeiros sob a luz hesitante das velas, porque a máquina oferecida está avariada e foi entregue à oficina das aranhas no canto da sala. As horas seguintes vão testemunhar vidas que desaparecem, em plena flor da idade, ceifadas por doenças banais.
A França, confrontada com a perda acelarada da sua zona de influência, nomeadamente, na África Ocidental, quer juntar a Guiné-Bissau ao seu portefólio. E fá-lo aliciando as autoridades nacionais com uns euros de ajuda orçamental e promessas falsas de cooperação. Na sua recente visita a Bissau, o presidente francês cometeu o despautério de gabar-se de que informou o seu anfitrião de que a Junta Maliana estava a perseguir a população da sua etnia – os fulas – uma intriga tribal feito num país multiétnico pelo presidente do país com um pesado passivo em matéria de instigamento de conflitos étnicos em África. Grave! Que o chefe de Estado bissau-guineense não vá em valsas de Paris, porquanto a pista é encorregadiça. E que alguém explique a Macron que o povo guineense não é tolo e nunca se deixará tapear com rebuçados que têm sabores amargos e engasgantes no fim.
3 Enquanto o país clama por debates sobre questões substantivas de Estado de direito e de desenvolvimento, líderes partidários com responsabilidades no governo e na oposição fogem do cenário político, refugiando-se em estadias que atravessam estações, no conforto da Europa, de onde os seus avençados das redes sociais lhes vão inchando o ego com banalidades que fragmentam e acentuam as clivagens na sociedade guineense.
No congresso do PRS (a emanação do PAIGC, convém salientar), voltou a ganhar a moção “continuar sem renovar”, o que faz questionar a verdadeira essência do partido que teve um papel preponderante no lançamento das primeiras sementes do multipartidarismo que hoje muitos confundem com democracia.
Quanto à reunião magna do Madem-G15 (a dissidência do PAIGC, importa sublinhar), intriga-nos a romaria ao conclave partidário da ministra dos Negócios Estrangeiros, do conselheiro diplomático do actual Presidente e do, até há poucos meses, carregador da cruz do candidato derrotado do PAIGC na sua inglória cruzada judicial. Não sabemos se são o cavalo de Tróia enviados da Presidência ou se estamos perante a confraria de feiticeiros a fazer jus ao dito popular “sakala ka ta papia ku makala si ka na disgustu di katchur” (o fulano não fala com o beltrano se não for para a desgraça do cão – o povo da Guiné, entenda-se), até porque o próprio Presidente da República acabou por ser convidado de honra, quiçá, numa tentativa de marcar posição face à presença no evento do seu antecessor.
E que é feito do PAIGC? O partido libertador nunca digeriu a derrota nas presidenciais, pôs-se a jeito e deixou-se encurralar na malha judicial corrupta que protelou, por meses, a realização do seu congresso. É o Frankenstein a divagar sem avistar o horizonte, perseguido pela sua própria criação.
4 O parlamento foi dissolvido no único momento em que ousou não aprovar, e bem, a “carta” que formaliza a anexação provincial ao Senegal. Um acordo de exploração conjunta que continua a entregar ao país vizinho, de bandeja, 70% dos benefícios de exploração potencial de hidrocarbonetos descobertos no território marítimo nacional, e a repartição por igual de recursos haliêuticos na zona conjunta, o que, na realidade, constitui um convite às frotas senegalesas para pescarem a seu bel-prazer no nosso mar, conhecido como maternidade de peixes. A Guiné-Bissau é dos quatro países do mundo com quem a União Europeia tem acordo de pesca misto – várias espécies. Segundo o último relatório do Comité Científico Conjunto Guiné-Bissau – UE, das embarcações licenciadas para a pesca de crustáceos no mar da Guiné, os navios senegaleses foram responsáveis pela captura de 62% de camarão no período 2017-2020, o que corresponde a 9.517 toneladas e a 10.8 milhões de euros a preço de exportação. Este valor é suficiente para adquirir quatro embarcações de pesca industrial para a frota nacional que ainda não existe! Não surpreende, portanto, que o país vizinho tenha na exportação do pescado a sua maior fonte de divisas.
Por paradoxal que possa parecer, a dissolução do parlamento em nada afectou a condução, já de si à deriva, dos destinos da nação, baseada na gestão letárgica, sem uma única linha de projecto coerente, mas com requinte de propaganda, tantos são os projectos estruturantes anunciados para o Dia de São Nunca. A casa do povo foi mera passarela de diapositivos disfarçados de programas de governo; de orçamentos feitos para delapidar, sob proteção da lei, o erário público; ou pior ainda, uma praceta para expor trapos enxovalhados da família, enquanto o comboio de desenvolvimento vai serpenteando o chão de Cabral com paragens frequentes no apeadeiro de N’salma, e Bissau teima em não embarcar. Porquê dar-se a tamanho e nobre esforço se o contrabando de tabaco de irã (droga) mais do que compensa? Continua…