É curioso que quando se fala do 25 de Novembro se fale de toda a gente – de Costa Gomes, de Sá Carneiro, de Mário Soares, de Ramalho Eanes, de Melo Antunes, do Grupo dos Nove – menos de quem esteve no terreno nas confrontações desse dia, há 48 anos: o pessoal do Batalhão de Comandos e, muito especialmente, os 260 “convocados”.
O papel destes “convocados” foi recentemente lembrado por um deles, o então capitão Manuel Sampaio Faria, que comandou uma das quatro companhias que intervieram no 25 de Novembro. No plano de resposta ao golpe esquerdista, a prioridade foi dada à tomada e controle do Comando da Região Aérea e da DGACI em Monsanto, onde estavam presos pela tropa revolucionária o general Pinho Freire e outros oficiais. Por isso para aí seguiram, na tarde do dia 25, as duas companhias de “convocados” que tinham experiência de guerra. A Polícia Militar, em Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, onde tinham sido detidos e torturados alguns “fascistas” e “reaccionários”, ficou para o pessoal das companhias “normais”, a 112 e a 113, no dia seguinte.
Tive o privilégio de ser amigo de alguns destes operacionais, entre todos e acima de todos do Victor Ribeiro, alferes-comando da 2ª Companhia de Comandos em Moçambique, comandada pelo então capitão Jaime Neves, routier e “homem de guerra”. O Victor e o tenente coronel Caçorino Dias foram decisivos na formação da Associação de Comandos e na mobilização de muitos dos “convocados”.
Os grandes protagonistas do 25 de Novembro foram eles e o pessoal das quatro companhias do então Batalhão de Comandos da Amadora, comandado por Jaime Neves, que chegara a ser saneado quando a febre esquerdista acometera a unidade. De resto, no período mais quente de 1975, o delírio revolucionário e a indisciplina que invadiram a tropa tinham levado à constituição do AMI (Agrupamento Militar de Intervenção), que originalmente previa uma força especial de três companhias de Comandos, três de Paraquedistas e três destacamentos de Fuzileiros. Destes, os únicos a formarem-se e a actuar em tempo útil foram os Comandos, com as companhias 121 (comandada pelo capitão Gonçalves) e 122 (comandada pelo capitão Sampaio Faria).
Foram eles – juntamente com a Força Aérea, também decisiva na contenção do golpe esquerdista – os esquecidos protagonistas do contra-golpe de 25 de Novembro. Eles e, na preparação, o chamado “povo do Norte” que nesses meses críticos e quentes vinha fazendo no terreno aos comunistas e esquerdistas o que eles faziam aos “reaccionários” e aos “fascistas” onde podiam e enquanto puderam. Nas vésperas, os agricultores de Rio Maior encarregaram-se de bloquear as estradas. Também na resistência ao PREC estivera, na Marinha, o chamado “Grupo dos Oitenta”.
Esquecer estes protagonistas do 25 de Novembro é como, a propósito do 25 de Abril, falar de Álvaro Cunhal, de Mário Soares e de todos os “resistentes antifascistas” e não falar de Otelo Saraiva de Carvalho e de Salgueiro Maia. Mas como a História é escrita pelos vencedores, com o aproximar do cinquentenário, com os meios mobilizados pelo Regime e pela Esquerda para a propaganda, é bom que preparemos a razão e o coração para aguentar, com cabeça fria e caridade cristã, o que aí vem – que, a avaliar pelos “Não podias”, pelo teor da Agenda celebrativa e pela produção editorial altamente inflacionada e orientada, promete.
Com o governo em gestão, os sinais de corrupção e má gestão a tornarem-se públicos e a convergirem com as zangas das comadres na classe política tudo se encaminha para uma “tempestade perfeita” em Março-Abril de 2024. E ao mesmo tempo há uma Europa que, de Madrid a Budapeste e de Roma a Haia resiste e diz não às novas esquerdas e aos “antifascistas” de serviço.
O Thermidor da revolução portuguesa
O 25 de Novembro foi o Thermidor da Revolução portuguesa. Usando um esquema interpretativo que o historiador norte-americano Crane Brinton tornou clássico para analisar “revoluções”, no seu livro The Anatomy of Revolution (1938), podemos fazer o paralelo entre as etapas da Revolução Francesa e a Revolução de 25 de Abril, até ao 25 de Novembro.
A partir da ruptura com o Ancien Régime no 14 de Julho de 1789 há um Tempo dos Moderados, um Tempo do Terror e, depois, o Thermidor. O nosso Ancien Régime foi o Estado Novo de Marcelo Caetano, sucessor de Salazar, um regime que estava tão feito à medida do seu criador que dificilmente lhe podia sobreviver. Um regime nacional-conservador e autoritário, “exótico” numa Europa Ocidental onde, em 1974, só a Espanha franquista e a Grécia dos coronéis não eram democracias partidárias. Um regime que, com o início da guerra de África, em 1961, recuperou alguma base popular de apoio, mas também renovou a dependência em relação aos militares.
Esse autoritarismo institucional do regime tivera antecedentes no autoritarismo real da Primeira República que, como bem o demonstram Jesus Pabón, Vasco Pulido Valente e Rui Ramos, foi bastante iliberal, ou foi uma autocracia democrática com muito pouca liberdade para os “inimigos da liberdade”.
Depois de um período inicial correspondente ao tempo dos moderados de Brinton e sob o pretexto de se defender contra o “regresso do fascismo”, também a Terceira República iniciou uma fase repressiva. Sob a tutela de um MFA obcecado pela descolonização a qualquer custo e pressionado pelo Partido Comunista, que se tornara o seu “brains trust”, promoveu a liquidação pela força da Direita, recorrendo à intoxicação informativa e à provocação. Fê-lo por medo dos partidos que se estavam então a afirmar, democraticamente, no terreno, como o Partido do Progresso. Para tal provocou e usou dois momentos críticos – o 28 de Setembro de 1974 e o 11 de Março de 1975. No 28 de Setembro de 74 o COPCON evitou a manifestação dita da Maioria Silenciosa, prendendo duas centenas de “fascistas” ou de “malfeitores associados” (e conseguindo assim que, cinco meses depois do 25 de Abril, houvesse “em democracia” mais presos políticos do que no dia 25 de Abril). No 11 de Março de 75, recorrendo também a uma manobra de intoxicação – e à estupidez de uma direita crédula que se deixou intoxicar – inventou uma “matança de Páscoa”, em que seriam assassinados centenas de oficiais “moderados”. Com isso, no momento em que, na oficialidade, com a eleição dos Conselhos das Armas, começava a manifestar-se uma maioria conservadora, fez sair e abortar o movimento do 11 de Março. E se no 28 de Setembro se abriu o caminho para a descolonização, que custaria o êxodo de um milhão de portugueses de África e não se sabe quantas centenas de milhares de vítimas nas guerras civis em Angola e Moçambique, depois do 11 de Março pode proceder-se à socialização da economia nacional, abrindo caminho à indigência económica que nos conduziu aos dias de hoje, com a ausência de bancos privados ou de grandes grupos empresariais portugueses.
A historiografia oficial qualifica o “capitalismo do Estado Novo” como uma “oligarquia de famílias” feita de “amiguismo e compadrio”. Sem discutir um modelo que, nos anos finais, permitiu o maior crescimento económico português de sempre e olhando para hoje, podemos pelo menos dizer que os antigos “oligarcas” eram portugueses. Hoje os oligarcas são estrangeiros e os compadres são os políticos que lhes facilitam a vida.
Nestas manobras a Esquerda também contou com a cumplicidade de uma direita sociológica despolitizada e assustada com a passagem do Estado para a demagogia gonçalvista; e, no susto, pronta a tornar-se cúmplice de quase tudo, pelo preço da sobrevivência. Faziam o que outras elites sociais tinham feito e fariam ao longo dos séculos XIX e XX: adaptavam-se aos regimes que iam chegando, abandonando valores e princípios para manter o estatuto social e os privilégios económicos. Aqui perderam-se princípios, estatutos e privilégios: houve alguns sobreviventes que passaram a fazer parte da classe política do novo regime, tal como tinham feito parte da classe política do Estado Novo, como também houve os que corajosamente sofreram prisões e exílios.
Com certeza que temos hoje, formal e constitucionalmente, liberdades públicas e direitos políticos que não existiam no regime anterior, um regime que não tinha condições de sobreviver ao seu fundador e a um outro tempo nacional e internacional. Só que o preço do golpe de Estado militar e da anarquia revolucionária que se seguiu, além da perda de poder nacional, foi um marasmo económico e social que as compensações da integração e dos dinheiros europeus conseguiram disfarçar, mas não evitar. Marasmo que hoje está à vista, na desnacionalização da Economia e no empobrecimento relativo dos portugueses. Mas os responsáveis políticos, na sua função de gerentes e capatazes de interesses estrangeiros, continuam como se nada fosse a assistir à deterioração da vida e das condições de vida dos portugueses. Agora, preparam-se para comemorar, com grande pompa e circunstância, os cinquenta anos de Abril; mas o que antes seriam os cinquenta anos de “socialismo em liberdade” inaugurados pelo 25 de Novembro, ou a usurpação da titularidade do 25 de Novembro pelo centro socialista, tende agora a ser ignorado ou rejeitado em nome de uma qualquer consensualidade à esquerda, vá-se lá a saber porquê.
A ascensão e permanência do centrão
Em Novembro de 75, a conjuntura internacional foi também decisiva para aquele princípio do fim do PREC. Vigoraram ainda os Acordos de Ialta e a União Soviética não queria uma Cuba na Europa Ocidental e na Península Ibérica. Com o general Franco prestes a desaparecer, um Portugal comunista seria um obstáculo à democratização e transição espanhola, onde havia ainda a memória da Guerra Civil e a realidade do fim, pelo menos em termos sociais, das duas Espanhas, conseguida pelo autoritarismo franquista.
E por cá, o Dr. Cunhal e as cúpulas do Partido, além da reverência e solidariedade para com Moscovo, sabiam bem que, a haver uma guerra civil, a perderiam. Também por isso, no 25 de Novembro, os fuzileiros, que hipoteticamente seriam a força de choque para equilibrar os Comandos, não saíram. E assim pôde Melo Antunes vir a terreno salvar o PCP; e pôde o centrão usurpar os louros da vitória.
Em 11 de Novembro, com a independência de Angola, Portugal voltava à dimensão de pequeno país europeu. Os soviéticos estavam contentes com o alargamento da sua esfera de influência na África Subtropical, com os despojos da descolonização. Os ocidentais, americanos e europeus, queriam acima de tudo evitar que Portugal se transformasse numa República de Weimar, com uma reacção à direita que aproveitasse o impulso do contra-golpe do 25 de Novembro e do “povo da direita” que estivera na primeira linha do combate nessa Primavera-Verão de 75. Iriam, por isso, actuar no sentido da contenção: o centrão servia-lhes perfeitamente. E, tal como o regime anterior, cá ficou por 48 anos. A “alvorada” começa a ser mais longa que a “longa noite”.