O “Artista”, o “Cínico” e o “Pai da gaja”

Sou de um tempo em que os códigos de identificação de bons, maus e vilões eram relativamente simples. Quase tão simples como os que, no Porto, da janela do primeiro andar de minha casa, ouvia aos miúdos da rua, para quem os filmes, todos os filmes, giravam à volta de três personagens: o Artista, o Cínico e o Pai da gaja.

Nos westerns havia cowboys bons e maus mas os índios eram geralmente maus, com o ocasional “bom selvagem”. Nos filmes da Segunda Guerra Mundial, os Alemães eram mesmo muito maus, mas se entre eles ainda podia haver o esporádico bom alemão anti-nazi, já entre os Japoneses não havia um único bom – talvez por isso morressem todos queimados a lança-chamas pelo Audie Murphy. Nos filmes da Guerra Fria, na Coreia, os comunistas e os chineses eram também descaradamente os maus da fita.

A Guerra Fria foi depois trazendo um material psicologicamente mais sofisticado, com filmes como O Enviado da Manchúria, os primeiros James Bond, ou os realizados a partir dos mundos de John le Carré ou de Len Deighton. Aí mantinha-se geralmente “o artista” mas desdobravam-se os “cínicos”, os vilões, e multiplicavam-se as “gajas”, cujos pais desapareciam.

Havia, no entanto, uma certa racionalidade, que correspondia à racionalidade das partes e dos contendores, soviéticos e americanos, com burocracias militares, diplomáticas e de intelligencerelativamente conservadoras nas estratégias, nas práticas e nos costumes.

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O Vietname trouxe depois um tipo de “artista” treinado para matar e traumatizado pela guerra, traído pelos políticos ou pelos burocratas e ferido nos seus códigos de lealdade. Um “artista” perturbado ao ponto de tornar justificável a violência e o instinto assassino que concentrava no resgate dos seus camaradas abandonados.

O macroterrorismo jihadista, no 11 de Setembro, veio alterar este panorama. O inimigo era agora diferente. E era suicida: um David engenhoso, terrível, imprevisível, acantonado nas grutas do Afeganistão, alimentado pelos espiões do Paquistão, infiltrado no Ocidente ou com cúmplices ocidentalizados.

Este novo conflito, ao chegar à ficção popular, deu origem a um outro tipo de filmes, ou melhor, de séries. Séries e não filmes: qualquer coisa entre o filme, o documentário e a telenovela; entre o simplismo do filme B, a ficcionalização à vista da novela, a ilusão de realidade do documentário e a sofisticação do romance de espionagem. Séries que seguem e acompanham os tempos, minuto a minuto, como a pioneira 24, episódio a episódio, temporada a temporada. Os heróis, ou “os artistas”, rebentam com todas as categorias dos miúdos de rua do antigamente: não só são muitas vezes “gajas” como podem também ser “cínicos”, debatendo-se numa teia de emoções e contradições. E nem os “cínicos” propriamente ditos, os vilões, e os antigos “pais da gaja” (os que, agora, de uma posição de poder embargam a acção) estão isentos de complexidades.

Segurança Nacional

Uma destas séries “realistas” é Homeland, que, iniciada em 2011 na Fox 21 e galardoada com uma leva de prémios, dura há dez anos. Além de reencenar a geopolítica do terror e dos inimigos da América, vai reflectindo o espírito do tempo e espelhando os seus valores, não prescindindo da eterna colherada ideológica.

No final do 12º episódio da Sétima Temporada de Homeland, Segurança Nacional, Elisabeth Keane, a Presidente dos Estados Unidos, no seu discurso de renúncia, refere os riscos para as democracias que vêm das tiranias, mas não resiste a afirmar que, pior que as tiranias, são os “iliberais” perigos que se geram dentro das próprias democracias. E enumera, en passant, as democracias em risco – Polónia, Hungria, Turquia, Filipinas…

A Sétima Temporada estreou nos Estados Unidos em 11 de Fevereiro de 2018 e acabou em 29 de Abril, isto é, em plena Administração Trump. Na incessante campanha de deslegitimação do Presidente republicano, eleito em Novembro de 2016 contra Hillary Clinton (numa vitória-surpresa para a qual o perfil da adversária muito contribuiu), houve sempre uma acusação/suspeição de que Moscovo – sob ordem do próprio Vladimir Putin – usara “medidas activas” para minar a campanha de Clinton e levar Trump à vitória.

Em 2019, a investigação do Conselheiro Especial Robert Mueller concluiu não haver provas de que a campanha de Trump tivesse conspirado com os Russos. Questão diferente seria se os Russos, que seguiam a eleição americana e avaliavam o seu resultado, teriam eventualmente procurado prejudicar Hillary Clinton, de quem esperavam uma política hostil.

Homeland, nessa Sétima Temporada, claramente adoptou e tratou de difundir estas teses. Keane, que poderia ser uma Hillary Clinton, é a presidente liberal, isto é, progressista, provocando a oposição da América profunda, dos “populistas”, dos Alt-Right, e concentrando a raiva persecutória de um senador do Arizona.

A “artista”, a heroína da série, Carrie Mathison, está inicialmente virada contra a Presidente, de quem fora colaboradora, por achar que Keane está a cometer abusos contra os direitos humanos; Saul Berenson, o protagonista masculino da série, depois de ter também caído em desgraça, é promovido a Conselheiro Nacional de Segurança.

Por detrás de tudo isto estão os Russos, que montaram uma operação para destabilizar a América, uma espécie de vingança pela derrota da Guerra Fria. Não se percebe bem porque o fazem, mas o certo é que toda esta Sétima Temporada se centra nesta operação, conduzida no mais puro estilo dos antigos “cínicos” do velho KGB.

Só que, na ânsia de actualizar temas e promover agendas, o desenvolvimento conspirativo e as peripécias desta série de grande sucesso são demasiadamente inverosímeis para passarem por uma boa ficção da realidade – como quando em Moscovo, em plena luz do dia, pessoal do SVR, o Serviço Civil de Inteligência Exterior russo, ataca a sede do GRU, o Serviço Secreto Militar.

Estes artifícios e conflitos do mundo das sombras são, evidentemente, a matéria-prima de que se fazem as séries de espionagem; e a Rússia de Putin não será propriamente uma democracia angelical, dedicando-se (tal como a América sob qualquer presidência) a algumas operações mais “musculadas”; mas retratar a Rússia de hoje como a União Soviética da Guerra Fria já será talvez desinformação.

Os heróis dos grandes ciclos literários e fílmicos da Guerra Fria, desde o cerebral, tranquilo e sofredor George Smiley, de John Le Carré, que acaba por descobrir a “toupeira” no próprio Serviço, e derrota Karla do Centro de Moscovo; ou o desenvolto Jack Ryan, de Tom Clancy, que chega a director da CIA, são personagens racionais, espíritos fortes. Carrie Mathison, a heroína de Homeland é bipolar, desequilibrada, atormentada. O primeiro herói masculino da série, Nicholas Brody, ficou preso dos jihadistas que o viraram e converteram. Carrie, na Agência, suspeita dele desde o seu regresso como grande herói, vai descobri-lo, mas, ao mesmo tempo, vive com ele uma imprevista e quente paixão de que nasce a pequena Franny. Brody é morto no Irão, pendurado numa grua; depois Carrie anda pelo Paquistão, por Berlim, sempre épica, sempre trágica, saltando da lucidez analítica para a depressão solipsista, quase suicida.

A “artista” é uma mulher, aventureira, apaixonada, com um selo de tragédia, que se envolve com um herói-traidor, que depois se redime. Saul Berenson, chefe de Carrie, alto responsável da CIA, homem de gabinete que já foi operacional, é o estratega, também com os seus dramas sentimentais e familiares. Sucessivamente, nas operações antiterroristas, os “cínicos”, os maus, os vilões, individuais ou colectivos, vão desfilando: os Iranianos são claramente maus; os Paquistaneses são ambiguamente maus; os Israelitas podem ser maus; os Russos são, nos últimos episódios, os piores de todos. O retrato dos Muçulmanos valeu à série acusações de islamofobia e até de racismo e uma partida pregada num cenário, o que levou a uma contenção nos clichés mais “orientalistas”…

Actualizações

Com a corrida de Donald Trump à Casa Branca, Homeland entrou em modo de campanha. A Sexta Temporada foi filmada no Verão de 2016, numa altura em que Hillary Clinton era dada como favorita. Assim, os episódios alongam-se sobre a novidade da primeira mulher presidente e Carrie torna-se sua conselheira e aparece a proteger muçulmanos americanos perseguidos. À primeira vista, a eleição de Trump em vez de Clinton, tornaria a Sexta Temporada contra-factual. Mas nas séries, com as suas esperadas voltas inesperadas, tudo é recuperável: a presidente eleita começa a adquirir tiques trumpistas e a entrar em conflito com o “Deep State”, é vítima de um atentado e passa por cima da Constituição, revelando tendências perigosamente “iliberais”. Ao mesmo tempo, aprofunda-se a divisão entre as “duas Américas” – a boa, a progressista, a da esquerda chique, dos grandes media, das minorias, da Califórnia e de Nova Iorque; e a má, a conservadora, a religiosa, a popular, a maioritariamente branca, a do Sul e do Midwest.

Na Sétima Temporada, já filmada em plena Administração Trump, avançam mais alguns cenários previsíveis protagonizados pelos previsíveis “cínicos” da moda, como um ultra direitista mentiroso e meio paranóico que vai incessantemente vertendo fake news em emissões-pirata escutadas por uma multidão de “deploráveis”.

Ainda que o mundo dos bons e dos maus não seja claramente separado, e apesar do carácter trágico, quase psicótico, dos seus heróis, Homeland – que é também o nome da nova Agência criada para defender a segurança dos EUA – não deixa de ter bons e maus, boas causas e más causas, boas e más ideologias, boa e má consciência. Dar Adal é uma espécie de Anjo Negro da Agência, o mestre das Black Ops, um maquiavel amoral, que coabita ambiguamente com inimigos da América, um “cínico” no território dos “artistas”; o próprio Saul Berenson tem problemas de dupla lealdade, pela sua ascendência judaica, como alguns neoconservadores da Segunda Guerra do Iraque. E até com Carrie ficamos na dúvida.

Homeland não é, obviamente, New Amsterdam, a série hospitalar por onde desfilam fardadas todas as etnias e minorias e onde, de caso comovente em caso comovente, tudo se faz para conseguir a adesão do grande público a tudo o que é causa fracturante.

De qualquer forma, estas séries americanas de grande sucesso, por mais tortuosas e fascinantes e independentemente da sua qualidade, acabam por ser quase tão previsíveis como filmes de cowboyspara miúdos de rua. Só que agora a previsibilidade nos chega sobretudo pelas acomodações narrativas aos novos “códigos de conduta” e às novas “boas causas” ideológicas .