Há pessoas que não têm tempo na nossa vida. Que não passam por ela. São, elas próprias, um tempo sem tempo que marca para sempre. São vida. A Graça é talvez um dos melhores exemplos destas almas velhas que tanto nos ensinam e nos fazem crescer. Passem 5 minutos ou 50 anos ao nosso lado.
Tive o privilégio de me cruzar com ela há uns anos atrás. Um convite para visitar um parque temático, na freguesia do Eixo, perto de Aveiro, dedicado ao tema dos afectos. Confesso que fui com algumas reticências, talvez derivadas de algum cepticismo de quem já viu muita promessa de projecto impactante nestas temáticas da saúde emocional e se desiludiu, logo a seguir, na maioria dos casos. Lembro-me até de ter alguma resistência em deslocar-me propositadamente até Aveiro. Li o curriculum e a história da “médica dos afectos” antes de ir e acho que apenas pela militante curiosidade que sempre me move, resolvi ir.
Com efeito, li que a Dra. Graça Gonçalves, durante mais de 20 anos, a somar à sua carreira médica e de professora, tinha embarcado numa verdadeira e apaixonante viagem pelo mundo das emoções, dos afectos e da importância da sua educação, para o desenvolvimento e bem-estar de todas as crianças, jovens e adultos. Autora de inúmeros livros com títulos tão sugestivos como “Prenda de Amor” e “Prenda de Ternura”, “Fala-me de Amor” ou “O Céu Dentro de Ti”, criou também jogos com temas relacionados com os afectos (os Jogos de Afectos GOSTAR, GOSTARzinho, Sentimentos, Flor da Idade e Carinhos, entre outros) e muitas outros frutos da sua criatividade inesgotável como Joalharia, Têxteis e Móveis, iguarias gourmet, azulejos e louças. E mais tempo lhe restasse, mais faria. Com aquele brilho nos olhos e aquela ternura nas palavras que ainda hoje consigo fechar os olhos, ouvir e sentir.
Entrei na sua casa, onde me serviu um chá, com uns bolos, e me sentou a uma mesa com uma toalha muito bem aprumada. Na altura já estava doente, embora não o tivesse sabido se não me tivesse informado. Na realidade, o sorriso e os olhos penetrantes daquela senhora pequenina e rija, de uma rigidez que conforta, eram um ponto de fuga para tudo o resto. Mais do que isso, apenas o efeito das sua palavras quando começou a falar dos seus afectos, das suas crianças. Da sua enorme paixão. Todo o resto desapareceu na certeza que ela me deu de que o mundo dos afectos e das emoções, esse Universo de interioridade onde realmente nos descobrimos, afinal era real. Existia um Lugar mágico onde nos ensinavam a abraçar este nosso lado de dentro. O Lugar dos Afectos. Foi o suficiente para me fazer membro do Conselho Consultivo da sua Fundação. Até hoje. Só tenho pena de não ter conseguido dar-lhe mais do meu tempo enquanto viva.
Álvaro Laborinho Lúcio, que escreveu o prefácio da 3ª edição do seu livro “Fala-me de Amor” disse dela: “Graça Gonçalves é, ela própria, uma fonte inesgotável de afeto. De coração sempre voltado para fora, olha o mundo pintando-o em tons de esperança e descreve-o envolvendo as chagas que o sangram em palavras de ternura.”. No espaço que custosamente foi construindo ao longo dos anos, hipotecando tudo o que tinha e não tinha para fazer face a despesas e compromissos bancários, ela demonstrou essa capacidade única de transformar sonhos em realidades, de “pincelar de esperança o mundo” – uma Casa Prenda de Amor, outra Flor do Sentir, uma Alameda dos Sentimentos, uma Praça do Amor e um Jardim Bem Me Queres. Tudo isto e muito mais cabia dentro da mente e do coração da autora com mais livros no Plano Nacional de Leitura.
Não consigo evitar agora pensar em Antoni Gaudi e na sua inglória morte atropelado por um comboio, com roupas de mendigo e sem documentos. Acabou por morrer sozinho num hospital. Não porque o caso da Graça seja semelhante – ela morreu rodeada de família e amigos que lhe queriam todo o bem deste mundo e dos outros, e que vão preservar o seu legado, se todos ajudarmos, por muitas gerações. Com muita gente agradecida e reconhecida. Mas não posso deixar de sentir que este País é muitas vezes cruel para com quem dedica, de forma tão resiliente, persistente e às vezes heroica a sua vida a uma paixão de transformar o status quo. E que é profundamente injusto que interesses políticos e financeiros dificultem tanto a vida a quem deviam apenas abrir caminhos para que voassem mais alto e sem limites. Esta senhora era um dos melhores exemplos de empreendedora social que até hoje conheci – porque não se importava com os títulos. Não queria os elogios vazios. Não procurava palmadinhas nas costas. Queria apenas fazer o que era importante fazer. Num mundo onde todos temos MEDO de falar de emoções, ela foi uma precursora e uma visionária. Uma portadora de uma mensagem de amor à frente dos seus tempos. Um dia, como a Gaudi, estou certo que farão justiça à grandiosidade tão simples da sua herança. Mas revolta-me que não tenha sido durante o seu tempo de sua vida. E que lhe tenham posto pedras onde deveriam ter lançado um tapete vermelho de veludo.
Quero terminar esta homenagem com um desafio a todos os que acreditam na importância que a saúde emocional tem nas nossas vidas – conheçam a obra da Graça. Visitem o Lugar dos Afectos. Falem dele aos vossos amigos, filhos e desconhecidos. Joguem os seus jogos. E, sobretudo, oiçam o que ela sempre nos disse e continua a dizer no sítio para onde partiu no dia 1 de Janeiro deste ano:
“… o amor (…) acha que se fala pouco dele, de… amor. Fala-se disto, fala-se daquilo… Mas de amor? Parece que há um certo pudor em falar de sentimentos…”
Que ela possa repousar no estado que lhe deu o nome próprio. É assim que todos a queremos imaginar. Com saudade e profunda admiração, lhe deixo aqui depositada as palavras do meu muito sentido afecto. Grato Graça. Grato pela luz que nos deste. E que estas tuas palavras ecoem pelo tempo sem tempo que és:
“…Ele, o amor, que ajuda a lidar com a saudade transformando-a num poema lindíssimo; que, da agressividade, faz sair a letra para uma canção e, com a sensibilidade que só ele tem, escolhe a página onde cola um retrato, ou faz um desenho. Ele que entende e aceita a diferença, as crenças, e amplia sonhos e esperanças. E que dá força para enfrentar tantas dificuldades. Até a morte. Não passará pelo amor a única ponte que une os vivos e os mortos?”
Nota: escrevi este texto ao som da banda sonora da “missão”, de Ennio Morriconne, e não pude deixar de sentir que era a mais adequada das músicas para esta criatura abençoada. A sua missão não terminou. Continua bem viva em todos os que a conheceram e num lugar mágico, por terras de Aveiro.
O autor, de forma voluntária e consciente, não segue o acordo ortográfico nos seus textos.