1 Este ano estive na Serra da Estrela em Maio. Amante da montanha fiz a pé alguns trilhos e verifiquei a quase ausência de marcas que me guiassem. Uma distância abissal dos Dolomitas em que tudo está bem assinalado e há excelentes mapas. Um sinal pouco animador quer da função reguladora do nosso Estado (ICNF) quer do nosso associativismo. Em Agosto não cancelei as férias na serra, já marcadas antes, em plena época dos fogos. Vi, no terreno, entristecido, as chamas a consumirem o parque natural, que ardeu na sua quarta parte. Foram-se, num ápice, cerca de 25.000 hectares de floresta. Vi, como todos os portugueses pela TV, muitas labaredas (afinal as imagens incentivam ou não os pirómanos?), as casas incendiadas, os animais mortos, a aflição das pessoas com os seus haveres, os bombeiros, a GNR, os autarcas. Ao contrário dos incêndios de Pedrógão, em que houve dezenas de vítimas mortais, neste isso não aconteceu. É provável, pois, que o crime ambiental associado a estes fogos seja depressa esquecido pelos media, lembrado apenas, diariamente, pelos que vivem nesses territórios e dele retiram sustento. Mas não deve ser esquecido. Sobretudo deve perceber-se as causas destes incêndios, os danos patrimoniais (capital físico e recursos naturais) e ambientais associados; a eficácia (ou não) da resposta imediata das entidades de proteção civil; as medidas imediatas que foram tomadas pelo governo e a estratégia de reflorestação e prevenção futura. Numa perspetiva mais geral, interessa responder a duas questões fundamentais: será que estamos a gerir de forma social, económica e ambientalmente responsável a nossa floresta?  Será que tudo o que foi feito desde a tragédia de Pedrogão, e muito está a ser feito, é suficiente, face à rapidez das alterações climáticas? Estão as políticas públicas baseadas no melhor conhecimento científico disponível e têm as instituições no terreno um modelo de governação para as implementar coerente, simples e eficaz?

2No que toca à gestão temos uma floresta tríplice. Primeiro, uma floresta de exploração associada sobretudo às fileiras do eucalipto (pasta de papel) e do sobreiro (cortiça), responsáveis por maior valor acrescentado e um contributo significativo para as nossas exportações. Segundo, uma floresta de mais pequena dimensão, mais baixa rentabilidade ou nula. Finalmente, uma floresta abandonada, de proprietários incertos ou em heranças indivisas em que existe não entendimento ou mesmo não comunicação entre herdeiros. Os problemas de gestão associados a estas duas últimas situações derivam de múltiplos factores. A indefinição dos direitos de propriedade em parte significativa da floresta que, ao contrário de outros países é quase totalmente privada, a ausência de cadastro em parte significativa do território a norte do Tejo onde existe uma fragmentação excessiva da propriedade (agravada pelo direito sucessório), as dificuldades do associativismo de produtores, uma fiscalidade desadequada dos prédios rústicos, o envelhecimento da população e abandono do mundo rural, o absentismo de muitos proprietários (alguns que usufruem apenas de um rendimento simbólico da sua propriedade), a falta de instrução de outros, a diminuição da pastorícia (que come vegetação). As soluções para estes problemas não são em geral fáceis de desenhar e são por vezes difíceis de implementar politicamente. O valor médio da contribuição predial rústica era, quando o calculei há mais de dez anos, o valor de uma “bica”! Hoje deve ser semelhante. Isto é um incentivo para o não emparcelamento de propriedades e para que, mesmo com rentabilidade zero, a propriedade se mantenha improdutiva e não seja transaccionada. Não havendo pagamento dos serviços de ecossistemas aos proprietários, é também um incentivo à não limpeza de combustível. A alteração da fiscalidade rústica é apenas uma entre muitas medidas que têm sido sugeridas nos últimos anos pelos peritos em floresta.

3Uma floresta que é mal, ou não, gerida é o terreno fértil para os incêndios florestais. Portugal ocupa o lugar, não honroso, cimeiro de ser o país da União Europeia com maior área ardida (% território), não apenas em 2022 (até agora), mas na média dos últimos quinze anos. Os incêndios, não provocam apenas os efeitos visíveis nas pessoas, animais e natureza, mas representam uma considerável emissão adicional de gases com efeitos de estufa (GEE) com total desperdício da energia produzida. São propiciados pelas alterações climatéricas (aumento da temperatura, seca, humidade, ventos intensos, etc.) e ao mesmo tempo agravam-nas. A  Lei do Clima europeia  estabelece objetivos ambiciosos para a redução da emissão líquida de GEE já para 2030, isto é deduzido o sequestro de carbono feito pelas florestas. Como reconhece o observatório técnico independente (OTI) criado na Assembleia República (extinto em 2021), sem a ajuda das florestas, isto é, sem um sequestro médio anual de carbono maior do que tem sido realizado entre 1990 e 2017 o objetivo de descarbonização da nossa economia nunca será alcançado. Note-se que em 2003 e 2005, anos de incêndios, o uso do solo, as alterações a esse uso e as florestas nada contribuíram para esse efeito de sumidouro de carbono; em contrapartida em 2017, o efeito líquido foi de aumentar significativamente as emissões de GEE. Se é certo que os modelos sugeriam uma probabilidade elevada de incêndios este ano por causas atmosféricas naturais, também é certo que temos ao nosso alcance várias políticas de adaptação e mitigação às alterações climáticas (sim, algumas só terão efeitos daqui a décadas) que devemos adoptar, bem como melhorar a eficácia da monitorização das florestas e do nosso sistema de proteção civil. O drama dos incêndios é também este. Para além da dimensão social e económica doméstica mais imediata está em causa a nossa contribuição como país para o aquecimento global, para as várias tragédias já existentes hoje noutras parte do globo como no Paquistão.

4Dos incêndios de Pedrogão resultou mais debate público, mais investigação académica e várias melhorias institucionais. Logo a seguir aos incêndios vários especialistas avançaram em artigo com 10 propostas para Portugal não arder, criou-se, no Estado, a Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF), na Assembleia da Republica o já referido Observatório Técnico Independente (OTI) que fez muito bons e úteis relatórios, vários planos foram aprovados (PNA, PNGIFR). As políticas públicas têm agora um manancial de conhecimento científico mais sólido em que se podem apoiar e era bom que isso acontecesse. Desenvolveu-se um sistema, porventura demasiadamente complexo, de proteção civil, com uma multiplicidade de atores. Aumentaram-se alguns recursos humanos, nomeadamente de sapadores bombeiros florestais.  Porém, o Estado, depois de ser incapaz de requalificar e reforçar o ICNF devidamente, está a desresponsabilizar-se da gestão das áreas protegidas, dando aos municípios a liderança da sua cogestão, modelo que tive a ocasião de criticar aqui, anos  antes de ser implementado.  Adicionalmente, a atenção e os recursos financeiros das políticas públicas na área florestal estão  direccionados quase exclusivamente para a proteção civil, de pessoas, animais e bens, que, devendo ser obviamente uma primeira prioridade, não deveriam fazer descurar o que está a montante dos incêndios e que, para além do inevitável agravamento das condições climatéricas naturais, é, na melhor das hipóteses, a negligência humana no ordenamento e gestão florestal e na pior a intenção criminosa. As ações de mitigação e adaptação às alterações climáticas têm um custo, e estando a floresta essencialmente nas mãos de privados, ou ela tem um valor económico para estes (o que para muitos não acontece), ou continuará a arder, ainda mais do que os modelos ou os “algoritmos” sugerem. Se não queremos continuar no pódio dos incêndios florestais é sobretudo para isto que temos de olhar.

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