Adoro. O tema, digo. Bolas paradas. É fascinante. E trabalhoso. Veja-se o caso de Messi. Um zero à esquerda, em matéria de golos de livre directo. Passo a bola a Fernando Signorini. Quem? O preparador físico da selecção argentina durante a era Maradona, de Outubro 2008 até à eliminação do Mundial-2010, aos pés da Alemanha (4-0), nos quartos-de-final.

Nesse período, Maradona treina Messi. Dois dos mais grandes de sempre juntos, ao vivo e a cores. Os argentinos vibram, o mundo também. Signorini nem se fala. Escreve, escreve e escreve. Tanto que lhe sai um conto, transformado em livro de considerável êxito. Chama-se “Fútbol llamado a la rebelión: la deshumanización del deporte”. Para ler e reler.

Conta ele muitos pormenores. Um dos mais deliciosos acontece em Marselha, na véspera de um particular com a França, em Fevereiro 2009. “Diego trabalhou com os onze titulares e eu com os outros. Nada de mais, umas rabias e pouco mais, só para desentorpecer as pernas e conhecer o ambiente. Quando acabou o treino, Mascherano, Tevez e Messi pediram para ficar mais um pouco a treinar os livres directos, ao que Maradona aceitou de pronto. Quando Messi pegou na bola e mirou a baliza, o remate saiu muito torto, por cima do ângulo direito de Carrizo. Fez um gesto de desagrado e começou a ir para o balneário. Apanhei-o a meio da viagem e… ‘Diz-me uma coisa: um jogador como tu vai tomar banho depois desta porcaria. Deixa-te disso. Agarra numa bola e volta a tentar.'”

“Acabo de dizer isto e lá vem Diego, que tinha ouvido tudo, como sempre. Envolveu Messi pelo ombro e disse-lhe: ‘Leíto, Leíto, veni, papá. Vamos a hacerlo de vuelta.’ Aquilo era um professor com um aluno. E Diego continuou: ‘Mete aqui a bola e escuta-me bem: não tires o pé tão depressa porque senão a bola não sabe o que queres.’ Acto contínuo, Diego meteu o pé esquerdo na bola e ela só parou no ângulo para admiração de Messi.”

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Bola extra: por essa altura (Fevereiro 2009, insistimos), Messi só tem um golo de livre directo na carreira, num Barça-Atlético Madrid. Daí para cá, qualquer coisa como 46. Isso mesmo, quarenta-e-seis golos. Dois dos quais em finais, um vs Real Madrid (Supertaça espanhola), outro vs Sevilha (Supertaça europeia).

Esqueçamos Messi, Maradona e Signorini. Continuamos à boleia dos livres directos. Há para todos os gostos. Esqueça a lista dos mais espectaculares de sempre, já a sabemos de cor e salteado: Roberto Carlos no França-Brasil 1997, um qualquer de Juninho no Lyon, o tomahawk de Ronaldo vs. Portsmouth 2008, um dos muitos de Van Hooijdonk aqui no Benfica, Beckham vs. Grécia 2001 pelo golo ao ângulo em jeito de apuramento para o Mundial da Coreia, onde a Inglaterra é curiosamente eliminada por um livre meio-sem-querer de Ronaldinho. Também os há (os livres directos) sem golo. Como o de Maradona à Inglaterra 1986, imitado por Gaitán num Benfica-PAOK para a Liga Europa.

Como assim? Bola na marca, pouco ou nenhum balanço e um passe para a baliza, como se fosse o penálti do Panenka. Se a ideia do futebol é dar espectáculo, Gaitán cumpre-a a preceito. Como Maradona. Com a classe que se lhe reconhecem.

Esqueçamos agora Gaitán e Maradona. Falamos dos livres directos por uma ocasião especialíssima, o do recorde nacional do século XXI na 1.ª Divisão. Então, quanto? Calma, nem é tanto o número de golos de livre directos, é o número de jogo resolvidos assim. Cinco, nada mais nada menos. Cinco jogos é obra. De Portugal, olé.

A viagem começa à segunda jornada, em Vila Nova. O Famalicão ganha 1-0 ao Rio Ave, golo de Patrick William. Na baliza, Kieszek é um espectador atento. Na quinta jornada, já em Setembro, dá-se um caso curioso no Bessa. Empate a um golo. Marlon abre o livro, com o pé esquerdo. Bruno Fernandes responde à letra, com o direito.

Passam-se uns meses, já estamos em Dezembro, 13.ª jornada. O Aves, imagine-se, ganha ao Braga pela margem mínima por obra e graça de Mohammadi. O iraniano despacha a bola, sem qualquer hipótese para Eduardo.

Passa-se o ano, já estamos em 2020. Pós-pandemia e tal. O Sporting derruba o Paços em Alvalade à base de Jovane Cabral. O livre é primoroso, Ricardo Ribeiro faz-se à bola em vão. O quinto e último jogo resolvido com um livre directo é na Cidade do Futebol, entre Santa Clara e Marítimo. Marca-o Xadas, meio sem querer, porque a bola é bombeada para a área a mais de 30 metros à espera de um desvio subtil. Ou não. Ninguém toca, nem o guarda-redes Marco. Golo e vitória, 0-1.

Cinco jogos, cinco. Todos resolvidos de livre directo. Um recorde desde 2000. Um bonito recorde. Classe.