Nos últimos meses o Ocidente voltou a sentir na pele um fenómeno que muitos julgavam morto e enterrado – a inflação. Desde os 7,3% da Alemanha, passando pelos 8,5% dos Estados Unidos, até aos 9,2% da Espanha, registados a finais de Março (em Portugal essa cifra foi 5,3%), os índices de preços de consumo atingiram níveis que não eram observados há várias décadas (no caso alemão, salvo erro, desde 1949). Para não parecer alarmista, as inflações subjacentes (quer dizer, excluindo alimentos não processados e energia) estão em 3,4% na zona euro e 6,5% nos Estados Unidos, valores bastante inferiores mas, ainda assim, elevados em termos históricos. Isto pode significar que as empresas e os trabalhadores estão, para já, a absorver uma parte do choque nos preços. No entanto, as máquinas precisam de energia e os trabalhadores de alimentos, de onde se depreende que, se a situação não se alterar, as subidas de preços se vão transmitir à generalidade dos bens e serviços

Existe uma certa tentação em utilizar como justificação para o reaparecimento da inflação a Guerra na Ucrânia ou a Pandemia. Apesar de serem acontecimentos com o potencial de provocar modificações significativas nos preços não são a causa da inflação. No caso da guerra não o é até porque os índices de preços que tentam medir a inflação começaram a registar subidas dois meses antes da guerra começar, nomeadamente nos Estados Unidos, cuja economia está relativamente muito pouco dependente das regiões envolvidas no conflito. No caso da Pandemia é óbvio que o vírus não tem qualquer responsabilidade na evolução do IPC, mas muitas das medidas económicas, completamente desproporcionadas e prejudiciais para a economia ou, o que é o mesmo, para as pessoas, sim. Nomeadamente, o uso da política monetária como substituto da actividade produtiva. Mais que um vírus, os responsáveis destas decisões foram seres humanos de carne e osso que conscientemente preferiram agradar a uma população tomada pelo pânico a inibir-se de implementar medidas que sabiam poder ter resultados catastróficos.

Isto porque, independentemente de guerras ou pandemias, a inflação é sempre um fenómeno monetário. A definição habitual de inflação, como a subida generalizada no tempo dos preços de bens e serviços, apesar de meramente descritiva, aponta implicitamente para a causa: a desvalorização do dinheiro empregue nas trocas. Dizer que o preço em dinheiro de tudo sobe ou que o valor do dinheiro se reduz é exactamente a mesma coisa. Para perceber o motivo da inflação é preciso conhecer a causa dessa desvalorização, que está sempre relacionada com o próprio dinheiro, as suas características, as limitações tecnológicas e as decisões monetárias. Nas sociedades modernas, onde o dinheiro é um crédito emitido pelo próprio estado, estas últimas são geralmente responsáveis.

Quando a inflação aparece, esta responsabilidade sobre o dinheiro enquanto criatura do Estado é geralmente obviada por governantes e especialistas nos meios de comunicação. Como se fosse algo que nos sucedeu fruto de circunstâncias alheias e imprevisíveis. No entanto, na Oficina da Liberdade, logo no início da Pandemia, em Março de 2020, escrevemos o seguinte em relação às medidas monetárias que os governos em geral e o português em particular estariam tentados a tomar (como depois tomaram):

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Em momentos de crise existe uma grande procura de dinheiro e daí que estas políticas de intervencionismo estatal não tenham sido até aqui inflacionárias no preço dos bens de consumo, embora o tenham sido, e muito, no preço dos activos financeiros. Na medida em que a procura de dinheiro durante a crise se mantenha elevada (e num primeiro momento assim será) deverá continuar a não existir inflação significativa no preço dos bens de consumo. Mas a inflação não é um cenário improvável no caso de existirem dificuldades na cadeia de produção e distribuição e/ou um aumento das necessidades de consumo acima da capacidade de produção. No limite, uma intervenção deste tipo dependeria sempre da capacidade futura do Estado em cobrar impostos. E em Portugal o elevadíssimo stock de dívida pública já existente não pode colocar as gerações futuras sob uma responsabilidade acrescida. Sem a capacidade de transformação da economia a que nos referimos acima, a inflação será uma realidade e a injecção de liquidez por parte dos bancos centrais é uma estratégia que tem como efeito não desejável diminuir a percepção pelos agentes económicos, da necessidade de reestruturar os seus negócios.

Se na Oficina da Liberdade, onde não contamos com equipas de economistas formadas nas melhores universidades, pudemos alertar para esta situação, é pouco provável que as grandes instituições monetárias e económicas não o pudessem fazer. E fazer, fizeram, mas para dentro. Desde a mal chamada Crise de Liquidez de 2007-08 que os bancos centrais não têm feito outra coisa que não seja chutar a lata para a frente, utilizando a política monetária para manter o sistema económico e financeiro ligado ao ventilador de respiração artificial, na esperança de uma lenta reestruturação produtiva. Este cenário, chamemos-lhe da Escola de Chicago, é o guião a que se comprometeram desde o começo do chamado Quantitative Easing. O segundo melhor cenário é uma inflação moderada (eles chamam benigna) que reduza os custos das empresas e do serviço da dívida pública à boa maneira Keynesiana. Em ambos os cenários existe um misto de incompreensão e esperança sobre as características e as capacidades do dinheiro moderno. Nas cinco décadas do regime monetário actual, muitos julgaram ter encontrado o dinheiro perfeito para conseguir um equilíbrio impossível: por um lado fomentar o crescimento económico e, por outro, financiar esse mastodonte de despesismo e ineficiência que atende ao nome de Estado Social ou do Bem-Estar, quando em realidade é uma bomba-relógio que atenta contra ambos, sociedade e bem-estar.

Poderíamos dizer que a origem dos problemas actuais remonta ao fim de semana de 13 a 15 de Agosto de 1971. Na sexta-feira 13, o Presidente Richard Nixon consultou os especialistas da Reserva Federal e do Tesouro e decidiu suspender praticamente toda a convertibilidade de dólares em ouro, acabando de facto com o sistema financeiro que se tinha estabelecido na Conferência de Bretton Woods em 1944 e que adoptou esse nome. Dois dias depois, domingo, essa decisão foi publicamente anunciada. A medida foi proposta como sendo temporária, para dar tempo ao sistema de convertibilidade para se restabelecer, mas como dizia Friedman, não há nada mais permanente que uma medida temporária do governo e, cinquenta anos depois, aqui estamos. Na realidade, este foi o último capítulo de uma novela que começou com a suspensão da convertibilidade do dinheiro pela maioria das nações civilizadas para poderem financiar a Primeira Guerra Mundial. A partir de então, um retorno ao padrão-ouro tornou-se inviável (e para muitos, indesejável), pelo que os sistemas financeiros em vigor antes e depois da Segunda Guerra Mundial apenas previam essa convertibilidade em casos especiais, normalmente apenas entre estados soberanos. A particularidade do sistema financeiro que temos hoje é que o dinheiro que está na base do cálculo económico é constituído por crédito. Não existe qualquer activo real (quer dizer, um activo que não é passivo de ninguém) na base daquilo a que chamamos dinheiro.

Para perceber sucintamente o funcionamento do sistema monetário necessitamos de perceber a sua origem. Esta remonta a um milénio. A maioria das pessoas julga que aquilo a que chamamos Ocidente (e antes Cristandade) surgiu com as revoluções científica, industrial e liberal dos séculos XVII, XVIII e XIX respectivamente. Outros, como os renascentistas, preferem olhar muito mais para trás. Para o Império Romano e a cultura grega da Antiguidade. Poucos acertam. A nossa Civilização tem o seu alvor no séc XI, pouco depois do ano 1000 com as reformas radicais que a Igreja Católica através do papado operou na sua organização e na sociedade em geral (reformas essas que se vinham fermentando nos conventos há alguns séculos) e com a forte expansão comercial que a acompanhou, uma revolução menos conhecida que as citadas mais acima, mas não menos importante. Esta Revolução Comercial teve como factores mais importantes o surgimento da lei mercantil, uma lei essencialmente privada, e o desenvolvimento de novos instrumentos financeiros baseados no crédito, que podiam ser utilizados como substitutos monetários nas transacções comerciais. Estes dois factores permitiram agilizar e simplificar as transacções comerciais de uma forma nunca antes observada e estiveram na base de um arranque económico, mas também científico e cultural, hoje praticamente esquecido pelo grande público, ao ponto de os anglo-saxónicos lhe chamarem a Idade das Trevas. Curiosamente, essa expansão da riqueza, da população e do conhecimento viu-se seriamente afectada pela Peste Negra, uma Pandemia de verdade. Daí talvez ter caído no esquecimento, mas o embrião das principais instituições que hoje reconhecemos como a espinha dorsal da nossa civilização: hospitais, universidades, ciência, lei, família e sistema financeiro, surgiram nessa altura.

Da evolução das práticas de mercado de então surgiu uma inovação que hoje em dia nos parecerá banal, mas sem a qual o complexo sistema monetário que utilizamos não poderia nunca ter existido. Desde tempos imemoriais que o crédito era coisa de dois indivíduos. A devia a B e tinha a obrigação de lhe pagar. Imaginemos que B devia a C e queria utilizar a dívida de A para compensar essa obrigação. Sob a lei romana tal não era possível sem a aquiescência de A. A tinha que estar de acordo com essa transferência da sua obrigação. Algures entre os séc. XI e XII esse impedimento caiu e A passou a estar obrigado a pagar a sua dívida a qualquer pessoa que a reclamasse, através de um título reconhecido a priori por A. Esta inovação permitiu não apenas que o dinheiro-metálico circulasse, mas também títulos de dívida, quer dizer, instrumentos que prometiam uma entrega de dinheiro a prazo e que, como tal, eram um quase-dinheiro ou substituto monetário que podia ser empregue em transacções comerciais. A prosperidade resulta da divisão do trabalho/conhecimento e intercâmbio dessa produção especializada. Os substitutos monetários permitiram à Europa medieval incrementar exponencialmente as trocas, a especialização e a prosperidade da sociedade.

No limite se A devia a B, B a C e C a A essas três dívidas podiam ser canceladas entre si sem a necessidade de envolver qualquer dinheiro no processo. Nasceram assim as câmaras de compensação. Esta prática foi-se expandindo pelos entrepostos comerciais e com ela surgiram os bancos comerciais que, em grande medida, se dedicavam a antecipar o dinheiro utilizando os depósitos em dinheiro que custodiavam para descontar estas dívidas sempre que os comerciantes tivessem necessidade antecipada de dinheiro físico. Com o tempo, em vez de entregarem o dinheiro físico, os bancos passaram a emitir o seu próprio crédito (convertível em dinheiro à vista) em substituição do crédito comercial e adoptaram a nota bancária que está na origem das notas modernas. Quem diz que os bancos só emprestam a quem não necessita está em essência correcto. O negócio dos bancos não é emprestar dinheiro, é fabricar substitutos monetários. Emprestar dinheiro é a matéria-prima necessária para o seu fabrico, mas na realidade o que os bancos estão a fazer é a monetizar o valor das receitas futuras provenientes de fábricas, casas, empresas ou salários através desse crédito que concedem. Não é prudente para um banco financiar projectos demasiado arrojados ou visionários já que estes podem pôr rapidamente em causa a solvência do banco, nem financiar quem não possa em caso de fracasso comercial responder com outros bens. O problema dos substitutos monetários é que são inerentemente instáveis porque toda e qualquer monetização de um bem futuro enfrenta uma incerteza que nunca é de todo erradicável. É assim que surgem as crises económicas.

Desde muito cedo que os governantes perceberam a importância política e económica de controlar o dinheiro. Um primeiro método rudimentar foi a cunhagem de moedas que, em teoria, garantiam um determinado peso e conteúdo de metal precioso. O monopólio de uso do dinheiro cunhado por um príncipe numa determinada região era uma das condições impostas por Jean Bodin para se poder falar de soberania de facto de um governante, ainda que esta fosse sempre mais difícil de impor na prática do que os estados estavam dispostos a admitir. O envilecimento da moeda, quer dizer, a redução do conteúdo de metal precioso por parte dos príncipes foi o primeiro e principal subterfúgio utilizado pelos príncipes para reduzir o valor do dinheiro e, deste modo, das suas dívidas denominadas nessa moeda. É também o primeiro registo da existência de inflação. As libras, marcos, francos, etc. referiam-se originalmente a pesos utilizados para todos os bens. Assim a Libra era originalmente a libra de Carlos Magno, o Marco era uma medida que correspondia a 11 onças de peso, o franco era uma libra tornesa (de si já um envilecimento da libra carolingia). À medida que os soberanos a envileciam passaram a denominar a moeda em si ao mesmo tempo que perderam a relação com o peso original.

Com o crescimento da actividade económica, os substitutos monetários foram-se tornando cada vez mais ubíquos e, com eles, a possibilidade de realizar números crescentes de transacções. O aumento da teia de interrelações fez que uma série de incumprimentos se pudesse alastrar e levar por diante mais bancos e empresas. Com a utilização generalizada do crédito surge aquilo a que chamamos os ciclos económicos, quer dizer, as bolhas financeiras. É por esta altura que surgem os bancos centrais como grandes custodiantes de reservas de dinheiro, que funcionavam como emprestadores de último recurso àqueles bancos que apresentassem dificuldades de curto prazo. Mas durante as grandes crises económicas os próprios bancos centrais arriscavam-se a não poder atender a todas as petições e suspendiam a conversão das suas notas em ouro. Após a Primeira Guerra Mundial a convertibilidade do dinheiro em ouro tornou-se virtualmente impossível tal era o montante de dívida pública emitida. Em vez de aplicar uma desvalorização a essa dívida, preferiram restringir o uso do ouro nas transacções comuns até que, como vimos, em 1971 a sua utilização foi permanentemente suspensa em todos os casos.

Se o dinheiro já não pode ser convertido em ouro, de onde resulta o seu valor então? A maioria dos autores dirão que o dinheiro actual é fiat, existe por decreto do Estado e não tem valor intrínseco. Isto não corresponde à verdade como já tive oportunidade de explicar num artigo anterior. O dinheiro que o Estado emite hoje em dia (ou melhor dito, o banco central) é um crédito fiscal. O Estado tem o poder de expropriar os cidadãos da sua riqueza. Normalmente isso é feito através da cobrança de impostos em dinheiro, mas o Estado poderia utilizar o monopólio da violência para expropriar directamente a propriedade dos cidadãos, como aliás ainda faz em certos casos especiais como são os das obras de arte. O facto de existir dinheiro permite que o Estado possa cobrar impostos em dinheiro e, quando este deixa de ser convertível, ocupar esse espaço aceitando o dinheiro existente (mesmo que não convertível) para a liquidação dos mesmos e, no processo, passar a emitir mais dinheiro que aceitaria para saldar impostos futuros. Na prática esta emissão é feita através do banco central pelo que o dinheiro, numa definição estrita, é um passivo do banco central. Mas este introduz o dinheiro (isto é, o seu passivo) na economia através da compra de dívida pública e retira esse mesmo dinheiro aceitando-o de volta contra a venda de dívida pública pelo que, de um ponto de vista económico, o dinheiro continua a ser um crédito fiscal, isto é, uma dívida do Estado.

Depois de uma década de turbulência, durante a adopção deste sistema (em que o preço do ouro chegou a 850 dólares a onça a finais da década, quando durante o sistema de Bretton Woods estava fixado em 35), a aceitação do novo dinheiro fez com que o uso deste fosse cada vez mais estável, reduzindo-se significativamente a inflação (quer dizer, a desvalorização do dinheiro) durante as décadas de 80 e 90.

A juzante do dinheiro estatal, os bancos comerciais continuaram a fabricar substitutos monetários para fazer face às necessidades do comércio e da indústria, mas agora num sistema que deixou de ter a âncora de um activo real como era o ouro. Foi em grande parte devido a este sistema económico que os estados conseguiram aumentar o seu gasto público de forma exponencial durante estas décadas, recorrendo à emissão de dívida que o sistema financeiro procurava em parte para escoar a poupança acumulada e em parte para se continuar a expandir. Com a redução das taxas de juro que a política monetária fomenta, o Estado e a banca passaram a possuir o que se acreditou ser uma quantidade de capital virtualmente ilimitada para financiar projectos. O crescimento económico resultante da expansão económica permitia, por sua vez, o pagamento de cada vez mais impostos, aumentando desta forma a solvência dos estados que emitiam ainda mais dívida, acrescentando outra volta ao ciclo económico de expansão financeira. Nas últimas décadas criou-se a crença de que a Economia tinha encontrado uma máquina do movimento perpétuo.

O problema é que as distorções nos preços relativos de bens de consumo e capital que a expansão do crédito provoca através da redução das taxas de juro levam a que os empreendedores acumulem erros sistemáticos de investimento, porque o preço de mercado do dinheiro a prazo (o juro) lhes diz que existe uma poupança real para os prazos necessários para sustentar os seus projectos de investimento. A expansão monetária iniciada nos anos 80 foi sendo paulatinamente sustentada pela monetização de activos cujas promessas de pagamento eram cada vez mais longínquas no tempo (como as hipotecas) e dependiam cada vez mais da baixa produtividade permitida pelas próprias baixas taxas de juro artificiais que geravam. Em 2007, o sub-prime americano expôs a imensa fragilidade de todo o sistema financeiro. À medida que os credores procuravam recuperar os seus investimentos, foram deprimindo os preços dos activos financeiros numa espiral que ameaçava destruir toda e qualquer emissão de crédito.

Nos tempos do padrão-ouro, o risco de não existir quantidade suficiente do metal para satisfazer todos os créditos funcionava como um travão à expansão do próprio crédito e quando este falhava a própria recessão aumentava o valor do dinheiro (ouro). Isto fomentava o aumento da sua produção e garantia que, a partir de um determinado nível de falências, o dinheiro não desaparecia. As recessões eram dolorosas, mas rápidas. Mas, num sistema inteiramente constituído por crédito, a destruição dos substitutos monetários ameaça a destruição da solvência do próprio Estado e, com ele, a desaparição do próprio dinheiro. É nesse cenário que a Reserva Federal, seguida pelos outros bancos centrais, decide começar essa grande experiência monetária que conhecemos por Quantitative Easing, e que consistiu em ir substituindo os substitutos monetários insolventes criados pelo sistema bancário por dinheiro emitido pelo banco central (e suportado pela solvência do Estado, isto é, a capacidade de cobrar impostos) para impedir essa contracção monetária, na esperança de poder reverter a contracção económica.

Só que a política monetária não cria prosperidade económica por decreto. A última década caracterizou-se pela estagnação económica, uma nova bolha no preço dos activos financeiros e uma duplicação ou triplicação da dívida pública. Os estados hipotecaram as suas receitas futuras para emitir uma quantidade tal de créditos fiscais que permitisse a manutenção da estrutura produtiva altamente endividada, socializando as perdas que daí possam decorrer. O problema é que, ao contrário do que sucedeu nos anos 80, não existe expansão do crédito do sistema bancário, quer dizer, nova emissão de substitutos monetários que fomentem o crescimento económico, pois bancos, empresas e famílias continuam demasiado fragilizados para poder arriscar a sua solvência. A redução da dívida dos agentes económicos foi sendo compensada quatitativamente pelo aumento da dívida do Estado, para assim manter o crescimento da quantidade de dinheiro e substitutos monetários.

Se a estagnação económica já era grave, a contracção provocada pelos confinamentos e financiada pelo anúncio do aumento da oferta monetária dos bancos centrais (mesmo que em muitos casos tenham sido promessas de fundos que nunca se irão materializar) provocou o aumento da quantidade de dinheiro em circulação sem bens ou investimentos a que atender. Mas não só. Com a diminuição da incerteza pós-pandémica a necessidade de saldos em dinheiro diminui assim como a capacidade de absorção dos créditos fiscais por parte dos próprios estados. Este segundo problema é tão ou mais grave que o primeiro, pois demonstra que a questão do valor do dinheiro não é só uma questão quantitativa. Num sistema de dinheiro-crédito, a questão também é qualitativa, de risco de crédito, e a redução da quantidade de dinheiro em circulação pode não ser suficiente para fazer a inflação voltar a níveis aceitáveis.

É aqui que a batalha retórica entre governos e bancos centrais vai começar. Para já os bancos centrais avisaram que vão reduzir as compras de dívida pública. A ideia é, com isto, aumentar a solvência dos estados, que precisam encontrar outro alguém que lhes financie o déficit e deste modo reduzir a inflação. Só que os governos, habituados à prodigalidade do sistema financeiro, irão tentar impedi-lo por todos os modos, alegando que o fechar da torneira dos bancos centrais vai provocar uma séria recessão, algo que, convenhamos, é absolutamente certo. Mas o contrário, o aumento do gasto público acompanhado das reduções de impostos (veja-se o que está a suceder no caso dos impostos sobre a energia) vai reduzir substancialmente a solvência dos estados e a continuação de altas taxas de inflação que são, afinal de contas, o imposto que os detentores de dinheiro pagam pelo incumprimento do Estado. Este imposto é o imposto mais injusto de todos porque é completamente cego na sua aplicação. Penaliza principalmente aqueles que não dispõem da flexibilidade para acompanhar a subida de preços e que são geralmente os mais débeis dentro da sociedade (pensionistas e desempregados), ao mesmo tempo que prejudica o aparecimento de projectos intensivos no uso de capital que são os que, a prazo, permitem os grandes aumentos de produtividade. Se a vontade dos gastadores triunfar, no limite voltará a surgir a famosa “economia de vão de escada” e voltaremos a ouvir dos políticos queixas de que os empresários só procuram o lucro de curto prazo, ignorando que o de longo prazo se tornou demasiado incerto para ser perseguido. A inflação é o caminho que os políticos vão preferir porque pode ocultar nominalmente a existência de uma recessão. Ignoro por onde iremos, se pela recessão dos bancos centrais, se pela estagflação (isto é, a recessão com inflação) dos governos. Mas o que parece seguro de qualquer forma é que a festa acabou e só uma reforma séria do despesismo do estado e das estruturas de produção económicas pode recolocar as sociedades modernas no caminho da prosperidade. De outro modo será a barbárie, que não é mais que um sinónimo de Socialismo.