Agora que o bitcoin supera os 20 mil dólares, reatam-se as discussões sobre se é uma bolha, uma fraude ou dinheiro de verdade. Correndo o risco de não agradar a ninguém, a minha proposição é que as criptos são moedas. São as primeiras moedas que procuram ser dinheiro-fiat de verdade. Chama-se dinheiro-fiat à moeda emitida pelos Estados quando esta não é convertível num metal precioso. O nome surgiu essencialmente por dois motivos, ambos falsos: 1) pela percepção de que é um dinheiro essencialmente idêntico ao dinheiro metálico que substituiu, mas que não possui valor de uso ou suporte real; 2) porque a palavra fiat foi interpretada como sinónimo de obediência a uma ordem ou decreto. A lógica é tão simples quanto errónea: como a moeda do Estado não está suportada por nada, então o decreto que afirma que é dinheiro é condição suficiente para que tal suceda.

Começando pelo final, não existe nenhum dinheiro que possa ser imposto por decreto. Se assim não fosse, nunca existiriam as hiperinflações, que não são mais que a rejeição generalizada da moeda do Estado, mesmo quando este proíbe e penaliza as alternativas. Como escreveu Mises: “Para evitar qualquer mal-entendido, direi expressamente que tudo o que a lei pode fazer é regular a emissão de moedas e que está para além do poder do Estado assegurar adicionalmente que estas se converterão em dinheiro. Tudo o que o Estado pode fazer através do seu carimbo oficial é destacar certos pedaços de metal ou de papel de todos os restantes da mesma espécie para que estes possam ser sujeitos a um processo de avaliação independente. (…) Mas estas mercadorias (nota: para Mises o dinheiro do Estado era um dinheiro-mercadoria) nunca podem converter-se em dinheiro só porque o Estado o ordena; o dinheiro só pode ser criado através do uso por parte daqueles que o utilizam em transacções comerciais”.

Ou seja, não é por o Estado dizer que uma coisa é dinheiro que esta se converte em dinheiro (por muito que aos governos lhes interesse que se pense que sim). É a aceitação generalizada pelos indivíduos nas suas trocas dessa moeda, ao ponto de a converter na unidade de conta, o que a converte em dinheiro. Isto é mais complicado do que parece. Todos os governos, sapientes da dificuldade de fazer com que a sua moeda seja aceite pelos agentes como dinheiro, põem em marcha uma série de iniciativas e organizações para garantir que a sua moeda pode funcionar como tal. A mais importante, mas não a única, é a separação das políticas fiscais e monetárias entre o Tesouro e o Banco Central, em que o segundo é formalmente independente e actua como garantia da estabilidade do valor do dinheiro, hipoteticamente travando a tentação do Estado de se endividar através de emissão inflacionária de moeda.

Daí que resulte, para a maior parte das pessoas, a conclusão de que os indivíduos aceitam algo como dinheiro que não tem qualquer valor de uso (para além de como dinheiro) nem está suportado pelo valor de nada (como estavam as antigas moedas pelo metal precioso ou as notas bancárias pela conversão). A grande dificuldade de muitos economistas, mesmo os mais sagazes como Mises, é perceber que o dinheiro do Estado não é um dinheiro-mercadoria, mas um dinheiro-crédito e, como tal, baseado em algo. No caso, na potestade do Estado cobrar impostos. Ao aceitar a liquidação dos impostos na moeda que emite, na prática, o Estado está a emitir créditos fiscais sobre a sua capacidade de expropriar os indivíduos – quer dizer, se o Estado não criasse um direito de expropriação sobre os súbditos (um activo) através do uso do monopólio da violência, a moeda do Estado tinha poucas, para não dizer nenhumas, possibilidades de se converter em dinheiro. No fundo, quando o Estado aceita de volta a sua moeda para saldar a dívida do contribuinte, está a dar um suporte real ao crédito fiscal que emitiu. O dinheiro moderno é, então, um passivo do Estado. Não só é falso que o dinheiro estatal não convertível seja dinheiro por força de um decreto, como é falso que não tenha nada que o sustente.

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Já as criptomoedas pretendem cumprir com estas duas condições. As criptomoedas não têm qualquer utilidade, nem suporte, para além de a de poderem desempenhar as funções do dinheiro, pelo que, como vimos antes, a partir do momento em que sejam aceites como tal pelo uso no comércio, ao ponto de se transformarem em unidade de conta, serão dinheiro-fiat, sem que para isso faça falta um decreto estatal. O que as criptomoedas ainda não são, é dinheiro. Isso não significa que sejam uma fraude ou uma bolha. O seu valor actual deriva da probabilidade subjectiva que os indivíduos lhes atribuem de converter-se em dinheiro no futuro.

Relembrando as três funções do dinheiro – meio de troca, reserva de valor e unidade de conta – constatamos que a) as principais criptomoedas são utilizadas em intercâmbios como meio de troca; e b) começam a desempenhar razoavelmente bem a função de reserva de valor. Estas duas funções continuarão a ser cumpridas sempre que exista uma expectativa de que uma cripto venha a ser dinheiro. Porém, ainda lhes falta ser a unidade de conta que os agentes utilizam no seu cálculo económico – a qual, de entre todas, é a função que identifica inequivocamente o dinheiro como tal. Obviamente, nunca se transformarão em dinheiro, se o número de indivíduos que as utilizam e a frequência do seu uso não incrementar substancialmente, mas é seguro dizer, pelo menos das principais, que não são uma fraude.

Também não são uma bolha. É verdade que as suas violentas oscilações de valor dão a impressão do contrário, especialmente para quem defina bolha, simplesmente, como algo cujo valor sobe e desce repentinamente com base na esperança de um lucro rápido. Todavia, essa definição de bolha está incompleta. As oscilações de valor repentinas, com uma subida e consequente descida, não são característica suficiente para identificar bolhas. Para que exista uma bolha de verdade, é preciso uma promessa de fluxos de pagamentos futuros. As criptomoedas não encerram em si tal promessa. Não são uma acção que prometa dividendos, um empréstimo que prometa juros, ou um investimento que prometa rendas. Uma bitcoin vale e valerá sempre uma bitcoin – é por isso que, ao contrário de uma bolha creditícia, o impacto económico de o preço da bitcoin cair a zero seria bastante limitado. Sem crédito não existe bolha, porque não existe a necessidade de desenvencilhar o entramado de promessas que se estabelecem entre os indivíduos em sociedade. Cada um assume o seu prejuízo sem prejudicar a terceiros.

Os criadores das criptomoedas estão a tentar usar a tecnologia existente para criar um dinheiro que combine as melhores características dos dois tipos de dinheiro – o dinheiro-mercadoria e o dinheiro-crédito. O dinheiro-mercadoria é, por exemplo, aquele que se baseia nos metais preciosos. Tem a vantagem de ser um activo real e, portanto, estar imune (como as criptomoedas) a formar bolhas financeiras. Tem a desvantagem de ser pouco prático no dia-a-dia, especialmente a partir do momento em que a divisão do trabalho começou a exigir níveis ingentes de intercâmbios para suportar os níveis civilizacionais de que disfrutamos. Para satisfazer esta necessidade, apareceram os substitutos monetários baseados em crédito (e com eles as bolhas ou ciclos económicos). Quando o sistema financeiro, por necessidade, ignorância e avareza abusou da qualidade do crédito, a moeda-mercadoria foi substituída pelo dinheiro do Estado, que, como vimos acima, é um dinheiro-crédito suportado pela obrigação tributária dos cidadãos.

Os problemas são que 1) o sistema monetário moderno está entregue aos abusos que os governantes perpetuam periodicamente sobre o dinheiro, desde que o primeiro rei decidiu envilecer o conteúdo da moeda que cunhava; e que 2) pela sua natureza exclusivamente creditícia, ele fomenta cada vez maiores e mais violentos ciclos económicos, com a agravante de não os poder desfazer sem saldar os créditos e, deste modo, destruir o próprio dinheiro em circulação. As criptomoedas são uma aposta na eliminação destes problemas. Os defensores do seu uso pretendem voltar a utilizar uma moeda com os efeitos auto-correctores do dinheiro-mercadoria, aproveitando a velocidade e segurança na circulação de que disfruta o dinheiro-crédito, tudo isto com garantia de não poder ser envilecida pelo príncipe. Os proponentes das cripomoedas querem forçar o sistema monetário a uma mudança de paradigma através do uso de tecnologias antes indisponíveis. Querem criar, pela primeira vez, uma unidade de conta que não tenha nem um uso alternativo, nem um suporte para o seu valor, mas que seja aceite pelos indivíduos apenas por ter sido concebida para ser o melhor dinheiro possível. Em suma, procuram criar o verdadeiro dinheiro fiat. Se é possível que algum dia este chegue a existir, é uma pergunta para a qual não tenho resposta. Para evitar o colapso do sistema monetário, é necessária uma reforma profunda para a qual os Estados não manifestam ter incentivo. Porém, pretender que se pode desenhar de raiz uma instituição tão importante e complexa como o dinheiro a partir de algoritmos que simulam comportamentos do mundo real, também acarreta a sua própria hubris.