A organização constitucional de Portugal comemora este ano o seu bicentenário, data ignorada por quem tinha o dever de a comemorar e desconhecida da maior parte dos cidadãos.

A Revolução Liberal portuguesa de 1820, dita do Porto por lá se ter manifestado o seu ânimo – sem desprimor por outros lugares onde tais ideias já eram discutidas –, animada pela burguesia e intelectualidade da cidade e influenciada pelo exemplo espanhol da Constituição de Cádis e pela revolução de Nápoles, resultou na exigência de regresso do Brasil do senhor D. João VI, saudado pelos subscritores do movimento. Tinha rumado para o Brasil em consequência da invasão napoleónica a Portugal e a exigência surge da desconfiança pela manutenção da tutela militar inglesa para lá do fim da guerra (cf. Nuno G. Monteiro e Jorge Pedreira, “As chaves do período 1808-1834”, in História Contemporânea de Portugal, vol, 1, editora Objectiva, 2013). Foi neste ambiente que se convocou Cortes para elaboração de uma constituição. A Constituição Politica da Monarchia Portugueza, Decretada pelas Cortes Geraes Extraordinarias e Constituintes, reunidas em Lisboa no anno de mil oitocentos e vinte e um. Em Nome da Santissima e Indivisivel Trindade consagra a separação de poderes, a igualdade jurídica e respeito pelos direitos pessoais. Tem termo assinado por D. João VI em 1 de Outubro de 1822, divide-se em 6 Títulos, compõe-se de 240 Artigos em 82 páginas manuscritas e vigorará por poucos anos, no total, tendo duas vigências, em 1822 e em 1836. Um exemplar está depositado no A.N. Torre do Tombo.

Como se sabe, em breve análise histórico-sociológica, ao Liberalismo vintista sucederá o período miguelista, um pré ou contra-liberalismo, que convocou em 1828 Cortes à maneira antiga ou tradicional, com os representantes dos três Estados do reino, como acontecia há séculos. Porém, após a tumultuosa e longa “guerra civil” portuguesa do período, opondo os defensores de D. Pedro IV aos defensores de D. Miguel I – este bastante próximo da nobreza (cf. Joel Serrão, Dicionário de História de Portugal, vol. III, p. 149) e principalmente do clero –, o espírito liberal sobreviveria. E trará inovação política democrática, a que se juntarão as reformas nas áreas dos transportes e comunicações da denominada Regeneração, durante a Monarquia Constitucional, tornando-se decisiva no ordenamento jurídico e no panorama político e social português contemporâneo até ao século XX – nomeadamente através da Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826 (cf. Jorge Miranda, As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto da Actual Constituição, 2004) que acompanhou um longo tempo de transformação económica e de mentalidades da sociedade portuguesa a par dos ventos das congéneres europeias. Numa sociedade maioritariamente rural mas que começava a viver sinais da Belle Époque.

Portugal tem uma História longa de país independente (cf. José Mattoso, O essencial sobre A Formação da Nacionalidade, Imprensa Nacional, e Saul A. Gomes, A Batalha Real. 14 de Agosto de 1385, 2014). Será contudo no constitucionalismo que conhecerá a criação de partidos políticos, que significa uma alteração acentuada de hábitos e práticas que vinham do passado, ainda que nesta altura fossem partidos “dos notáveis” (cf. Norberto Bobbio et alii, Dicionário de Política, vol. 2, editora Universidade de Brasília, p. 899). Não podemos deixar de referir pela novidade da transformação e alteração que implicou, em parte da paisagem rural e urbana de vastas regiões, a alteração de mãos da propriedade que se seguirá à Revolução Liberal, nomeadamente nas regiões até então decisivamente entregues aos bens das Ordens Religiosas, extintas em 1834 e cuja extinção implicou grande alteração no modus vivendi das populações locais. Aliás, boa parte dos proprietários portugueses de hoje passam a sê-lo nessa altura, com tudo o que isso implica de contribuições e impostos e também de influência social local ou nacional.

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A Política, para a Ciência Política, como refere o pensador Norberto Bobbio, respira em torno da mundividência grega da “Noção de Pólis” e o autor apresenta de forma competente a “Elucidação sobre a persistência histórica e difusão geográfica da Cidade-Estado”. (cf. Dicionário de Política, p. 949 e seguintes). Daqui importa reter que a política implica um poder, por vezes coercivo, na linha filosófica hobbesiana em que cada indivíduo renuncia ao uso da força com vista a estabelecer o Estado civil, o Estado político, que é caracterizado, segundo o citado, pela “exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e uso dos meios com que se pode exercer a coação física.” (Dicionário, p. 956). Tendo nós agora alguma compreensão do que é o Estado e a sociedade oitocentista, podemos interrogar-nos: e como se deram estas transformações? A população portuguesa não pensaria da mesma forma que vinha do século anterior? Qual a dimensão e profundidade das alterações trazidas pela revolução e pela Constituição que tem fama de radical? Tudo terá mudado?

Analise-se, por exemplo, o caso de um bispo deputado, ou deputado bispo.

As dioceses portuguesas e a respectiva implantação no território foram um factor decisivo na dinamização dos lugares e permitiram em certa medida que haja uma cultura regional na Época Contemporânea que alicerça na História e nas tradições um traço significativo do seu dinamismo social e cultural, muito marcado aliás pelo património religioso. Traço cultural este que é simultânea e naturalmente transversal e múltiplo, universal, pois em parte emana da mundividência católica que significa precisamente universal. A diocese ou bispado de Elvas (actualmente extinta) no Alto Alentejo – território que é das principais portas de entrada por via terrestre em Portugal, traçando a fronteira raiana luso-espanhola, como bem demonstra a primeira invasão Francesa – parece um caso paradigmático dessa realidade complementarmente universal e local. Criada em 1570, por bula do Papa Pio V, por vontade expressa de D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique e contra a vontade do Bispo e do Cabido de Évora, do qual foi desmembrada, foi uma conquista para aquela zona do Alentejo. A diocese é extinta em 1881 deixando formalmente a Igreja local de se chamar Sé (cf. Sistema de Informação para o Património Arquitectónico), ainda que popularmente continue a ser assim designada a igreja paroquial. Entre o século XVI e o século XIX, e apesar de afastada do centro político do país, a diocese tem vários bispos com relevante obra teológica e de memórias que é hoje útil consultar se quisermos saber o que houve na região e no país. A investigação do passado tende a ajudar a preparar o futuro.

A este propósito, recorremos a um texto do bispo durante as Invasões Francesas e sobre as quais tem uma reflexão fundamental. Ainda que nem sempre seja de fácil compreensão, transcrevemos um excerto da obra do que foi Bispo de Elvas entre 1806 e 1818. Devemos lembrar-nos que não se recomenda paralogismos, isto é, raciocínios que levam a conclusões erradas porque não tentam conhecer o contexto da época em análise. A época levava a um certo fulgor do espírito patriótico – em pastoral de 20 de junho de 1810 o bispo anima a resistência ao invasor (cf. Manuel Rodrigues, As invasões francesas em cartas pastorais de bispos portugueses: posição dos prelados de Angra e de Elvas, separata da Revista de História das Ideias, vol.7, Faculdade de Letras de Coimbra, 1985, p. 101) – em resultado da devastação que a cidade tinha vivido (e principalmente o património de Vila Viçosa, tal como aconteceu no Mosteiro de Alcobaça e no resto do país) durante a ocupação de Elvas entre 1807 e 1808 pelas tropas de Bonaparte. Os franceses serão derrotados entre 1810 e 1811 nas linhas de Torres Vedras. E cito o bispo: “[…] Eu por esta vou beijar a mão a V. Exª, e agradecer este testemunho publico, que V. Exª acaba de dar do respeito com que trata a Religião dos Portuguezes: eu posso segurar a V. Exª que por este procedimento tão sábio, e tão judicioso ganhou V. Exª mais uma batalha, e o coração, e respeito não só dos Portuguezes, mas tambem dos Hespanhoes, nossos Religiosos Alliados […] Dom José Joaquim da Cunha d’Azeredo Coutinho por mercê de Deos, e da Santa Sé Apostolica, Bispo d’Elvas, do Conselho de S. A. R que Deos guarde, etc. etc.” (cf. Das cartas, que o Exmo. Bispo d’Elvas escreveu aos Exmos. Generais Ingleses, que mais contribuirão para a Restauração de Portugal, & anno de 1811., colecção de manuscritos publicada em 1819 em Londres pelo impressor L. Thompson).

O Bispo D. José Azeredo Coutinho é uma personalidade sui generis em Portugal e no Brasil pelas questões – hoje controversas, e que merecem cuidada leitura – e posições que tomou em relação à escravatura (cf. Sónia Siqueira, A escravidão negra no pensamento do bispo Azeredo Coutinho: contribuição ao estudo da mentalidade do último inquisidor geral). Outrossim deixa obra escrita e construída de relevo para as comunidades locais, nomeadamente o Recolhimento no Recife. D. José nasceu em 1742 em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, então parte do império português, tendo estudado na Universidade de Coimbra. Foi nomeado Bispo de Olinda-Pernambuco em 1794, mas é como Bispo de Elvas que ficará para a História (foi membro da Academia das Ciências de Lisboa e o último Inquisidor-Geral do Santo Ofício entretanto extinto, pelo que o seu papel não ficou clarificado). Curiosamente este prelado aceita ser deputado pelo Brasil às Cortes Constituintes e morre dois dias depois de tomar posse, em 12 de setembro de 1821. Não se sabendo por isso a sua actuação e pensamento perante a novidade do constitucionalismo surgido com a Revolução Liberal de 1820, esse marco na História portuguesa cujas Cortes reúnem pela primeira vez na sala da livraria do Convento das Necessidades em Lisboa em sessão a título preparatório a 24 de Janeiro de 1821. Tendo sessão dois dias mais tarde e, a presidir, o Arcebispo da Baía, que refere “o brioso Povo desta muito nobre Capital pela muito distinta maneira com que se tem empenhado na santa Causa da Liberdade Nacional” segundo Ata da sessão. As Cortes Constituintes estão representadas numa belíssima aguarela de Roque Gameiro, para além da célebre luneta de Veloso Salgado (cf. Veloso Salgado, * 1864 | Geneall.net) da sala da Câmara dos Deputados no edifício do Parlamento, presentemente Assembleia da República.

Foi necessário tempo, que passou por aprovar as Bases da Constituição, para elaborar esta primeira Constituição ou lei fundamental. Nos anos de 2020, 2021 e 2022 assinala-se o bicentenário que permite vários olhares, das diversas áreas científicas, sobre as dimensões do período liberal e à memória do qual também estará ligado o Bispo de Elvas, ainda que pelos breves dias simbólicos em que é deputado às Cortes Geraes, Extraordinárias, e Constituintes da Nação Portugueza (cf. Actas das Sessões, Tomo I, Imprensa Nacional, Lisboa, 1821) que, a 23 de setembro, aprovariam a Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822.

Assinala-se agora os 200 anos da primeira Constituição portuguesa e parece não ter chegado ao conhecimento da sociedade civil. E quem tem o dever foi parco a comemorá-la.

Entretanto está patente na Assembleia da República até 30 de dezembro a exposição documental “A Primeira Constituição Portuguesa – 1822” que pode ser visitada.