No rescaldo das presidenciais de 2016, José Manuel Fernandes, publicou uma crónica que me encheu de esperança e colmatou o desalento provocado pelo fraco resultado do candidato que dedicadamente apoiara (Sr. Henrique Neto).
José Manuel Fernandes indagava-nos com a habitual acuidade, “E se o tempo de Marcelo estiver a terminar?”, isto é, o tempo em que plataformas de disseminação de informação massivas estabeleciam, em oligopólio, “um palco comum onde todos os debates se travam”, e se este podia dar origem ao “país do Facebook” no qual “esse espaço comum tenderá a ser cada vez mais segmentado e polarizado”.
Estávamos no início de 2016 e, embora pareça ter sido ontem, passou-se quase uma década: os estreantes no voto nas várias eleições de 2024 tinham então 10 anos. Aconteceu antes do Covid, da vitória do Euro, do Brexit ou da candidatura de Ventura à Câmara de Loures ainda pelo PSD, ainda antes da fundação do CHEGA.
O presidente então eleito já tivera intervenção política antes do 25 de Abril, tal como Cândido Ferreira. Fora docente como Jorge Sequeira, investigador académico como Marisa Matias, dirigente universitário como Sampaio da Nóvoa, vereador como Paulo de Morais, presidente de um partido como Vitorino Silva, legislador como Edgar Silva, deputado à Assembleia da República como Henrique Neto e até ministro como Maria de Belém.
Contudo, nenhuma destas ocupações valeu aos seus adversários, tamanha pegada eleitoral, dizimados na disputa.
Se escrutinarmos o seu percurso, verificamos como pouco restou do seu magistério no PSD (’96-99) e ainda menos do seu ministério dos assuntos parlamentares (82-83) mas o modelo em que pontificou –de comentário político – foi replicado ad nauseum pelas várias estações de televisão, com dezenas de “aspirantes a Marcelo” que agora se consolidaram num canal próprio.
Dada a sua desastrosa presidência, esse formato televisivo a que todos parecem aspirar, será o seu maior legado em vida.
A polarização e segmentação são extremamente indesejáveis mas, uma presidência escolhida em função da popularidade televisiva, personificada num candidato que “não se comprometia, não revelava o que pensava (…) não se pronunciava sobre políticas públicas” não só oferece muito pouco ao país, como estabelece a “caixa que mudou o mundo” como o derradeiro eleitor, o selector de agentes políticos que evidencia quem, à esquerda ou à direita, merece ser ouvido.
Esse país poderá ter virtudes como a estabilidade e coesão. Oferece, porém, pouca variedade e ainda menos democracia. Como então ouvi em off do presidente do seu partido, também eu “desejava um Portugal cujos Presidentes fossem eleitos pelo voto consciente dos cidadãos, e não pelas câmaras de televisão”.
Não foi só Marcelo a ser “eleito pelas câmaras de televisão”: José Sócrates, nas palavras de Vasco Pulido Valente, “foi feito secretário-geral do PS” de igual modo “por um diretor de programas da RTP”.
Somam-se-lhe os inevitáveis Santana ou Marques Mendes. O Presidente do concelho Europeu é hoje o político mais incontornável da década, mas em 2007 quando conquistou a edilidade Lisboeta por 2/3 do resultado de Moedas, foi o assento televisivo permanente entre o distanciamento de Lobo Xavier e o arrivismo de Pacheco Pereira, que o catapultou para o estatuto de omnipresença e moderação com que, à posteriori, os Portugueses o firmaram. Nas segundas presidenciais de Marcelo, escutei o argumento de que, em ano de pandemia, seria impossível notabilizar alguém com alguns meses de campanha como se fez com António Sampaio da Nóvoa. Desta forma, três comentadores preencheram o pódio classificativo. Se os Portugueses entregaram o bronze a um comentador desportivo e a prata a uma comentadora política, haverá espaço na polis para quem não seja comentador?
Em 2014, os Socialistas televisivos provinham maioritariamente da era de José Sócrates, indicados como deputados et al para a legislatura vigente; Quando coordenadamente exigiram, nos respectivos palratórios e sem contraditório, um congresso supra estatutário para substituir o líder, a ideia transmitida foi a de que toda a gente no PS desejava apear o líder.
As eleições internas desse ano provaram que a maioria dos dirigentes eleitos não o queria. O facto é que a maioria dos dirigentes eleitos não tinha assento nos estúdios de televisão, nem a contratação de comentadores partidários é feita pelas comissões políticas. Mas para quem quer fazer política, têm os estúdios de televisão prevalência sobre as sedes partidárias? Tem a predileção dos diretórios mediáticos predomínio sobre o voto dos militantes?
Em 2013 existiam em Portugal 69 horas semanais de comentário político – não se contabilizavam então os deputados que cumulativamente comentavam futebol. Segundo o MediaLab do ISCTE, em 2016, eram 53 os políticos que comentavam; em 2024, são 78. A sua grande maioria não foi eleita. O país tem muitos mais políticos – só presidentes de câmara são 308 – mas, se um autarca, digamos, de Vila Real de Santo António não figurar em horário nobre, ainda que sufragado por mais cidadãos do que Bugalho o fora até às Europeias, a poente de Tavira, esse autarca será vítima do que a banda brasileira “Ponto de Equilíbrio” batizou de “a ditadura da televisão”.
“Se não passa na Televisão”, decretou Berlusconi, “Não existe”.
Há, de facto, uma correlação entre o surgimento da televisão – isto é, entre a existência de uma rede de comunicação ultracentralizada – e a ditadura.
Em The Square and the Tower: Networks and Power, from the Freemasons to Facebook, o historiador Niall Ferguson argumenta que a multiplicação de meios de comunicação gerada pela invenção de Gutenburg quebrou a hierarquia social até então existente, assente no monopólio do poder clerical exercido pela Igreja Católica. “Nas cidades com pelo menos uma impressora em 1500 mais provavelmente adotariam o protestantismo do que as cidades sem impressora, mas as cidades com múltiplas impressoras concorrentes que se tornaram certamente protestantes”.
Pelo contrário, as tecnologias conducentes a processos de centralização comunicacional, como explica Mark Manson, antecedem a concentração de poder e protagonismo nas figuras de proa dos regimes ditatoriais e autoritários. “Quando milhões de olhos estão a ver a mesma coisa, isto garante uma enorme oportunidade para os governos persuadirem as pessoas a sentirem-se de certa forma. É aqui que a habilidade de manipular e influenciar pessoas a terem certas opiniões e desejos são formalizadas em propaganda (…) A rádio e a televisão” isto é, as redes de disseminação de informação centralizadas “criaram a maior solidariedade cultural que alguma vez vimos na história da humanidade. Toda a gente via os mesmos programas, ouvia a mesma música, acompanhava os mesmos acontecimentos (…). Da primeira guerra mundial até ao fim da guerra fria, houve sempre conformidade política e confiança, especialmente porque independentemente do país onde vivesses, estarias provavelmente unido contra algum inimigo externo”.
Por isso foi fácil manter uma ditadura nos dias do exclusivo radiofónico das oligopolistas Renascença, Rádio Clube Português e Emissora Nacional – todas na cercania do regime – e televisivo da RTP, cujas “Conversas em Família” Marcelo transitou de Sábado (1968-1974) para Domingo (2000-2015), onde como escreveu o romancista Hugo Gonçalves “Marcelo fala e, porque é professor (…) os portugueses repetem o que disse no dia seguinte, ao lado da máquina de café”.
Em De Ernesto ao Che, Carlos “Calica” Ferrer conta como numa fronteira intersticial da América Latina a guarda pretoriana do caudilhismo local os revista num comboio despojando de livros tidos por ideológicos ou “subversivos” – uma prática algo absurda à luz da atualidade preenchida por pdf’s e Kindle.
Sim, na China, na Coreia do Norte ou no Irão existirão controlos sobre o tráfico virtual e a livre circulação de informação, mas trata-se de ditaduras castradoras e inabitáveis.
Este último, por exemplo, concede o direito à intervenção política apenas aos candidatos ungidos pelo “Conselho dos Guardiões”, o órgão constitucional (nas palavras do activista Rui Martins) “responsável por examinar e aprovar as candidaturas para as eleições presidenciais e parlamentares com o poder de vetar candidatos que considere não alinhados com os princípios da República Islâmica do Irão”. Mas, como prossegue o articulista, o órgão é “composto por 12 membros” e os directores de programa dos canais que acumularam 85 % do share do mês de Março intermediários entre os aspirantes à cousa publica e o poder – são apenas 4.
O Regime dos Ayatolahs é-nos mais próximo do que gostaríamos de admitir.
Em ano de autárquicas, enquanto os partidos que concorrem a capitanear edilidades encomendam sondagens para comparar a popularidade dos putativos capitães, opondo dirigentes locais (frequentemente vereadores com obra e legado) às propaladas “figuras nacionais” – isto é, pessoas que apareçam na televisão – recordemos “Dar Força a Odivelas” de Fernando Seara, lançado como Ventura a Loures, em 2017 sob a premissa elitista de que um “paineleiro benfiquista” sem programa ou ligação ao concelho, é quanto baste para encantar os suburbanos, facilmente seduzidos pela bola.
Os eleitores – que têm sempre razão, como na noite das presidenciais me ensinou Henrique Neto – mostraram o contrário. A televisão concebeu Trump muito antes de o próprio se politizar, contudo, as milhares de horas de Joana Amaral Dias no ecrã não potenciaram o voto no ADN, reduzido em 47 % este ano entre Março (na candidatura liderada pelo advogado Bruno Fialho) e Junho (na candidatura liderada pela psicóloga e ex-deputada).
Para ocupar o cargo melhor remunerado – e por isso desejado – da política, AD e ADN recrutaram os seus cabeças de lista entre independentes no estúdio e não nas respectivas fileiras militantes. Mas os portugueses não confundiram exposição com aptidão. Também isso descredibiliza os papagaios putinistas quem, por muito folclore que concedam ao prime time, ainda não nos russificaram
É importante perceber por que razão os media remuneram extraordinariamente dirigentes partidários (já de si bem pagos) desprovidos de formação superior para comentar futebol ou o que calhar. Como se viu no caso Mortágua, a representante à república empregou-se paralelamente junto de uma entidade patronal – fortemente regulada pelo Estado – no decurso de um mandato que assumiu em exclusividade. Está no seu direito? Citando um famoso propagandista, “em Política , o que parece é”!
Num jantar com políticos-comentadores, três convivas disputavam quem granjeara mais audiência no seu último programa (os três rondavam as cem mil). Lamento, mas nos dias da internet – de Joe Rogan, Mark Laita ou Paul Joseph Watson – são insignificantes. Por isso, aos dias de Marcelo, prefiro os de Miguel Macedo e Gonçalo Sousa quem, por muito ideologicamente demarcados se apresentem, como parece ser apanágio da respectiva geração, operam em canais passíveis de contestação, debate e concorrência.
Que o futuro lhes pertença.