Há uns dias estava a preencher um questionário para um estudo a ser realizado na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Numa das perguntas, surgiu uma lista de sentimentos para avaliarmos a intensidade com que os tínhamos sentido. Quando pousei os olhos sobre o ecrã, foi como se estivesse a ler uma língua que ainda não conheço, e que preferia nunca vir a conhecer. Os sentimentos listados eram: interessade, excitade, orgulhose, perturbade, irritade, encantade, atormentade, culpade…
Antes de dizer qualquer outra coisa, eu nasci mulher, identifico-me como mulher e escrevo do ponto de vista de alguém que nunca se sentiu fora do seu corpo. Mas já me senti pouco mulher, já me senti com características femininas numa quarta-feira e com características masculinas numa sexta. O que é afinal ser mulher? Ser homem? Sentirmo-nos homens, sentirmo-nos mulheres? E quando é que começámos a odiar tanto o conceito de homem e de mulher que há quem consiga sentir-se ofendido com palavras escritas com flexão de género, diga-se, “estou irritado, estou irritada”.
Havia uma associação inconsciente que quase todos fazíamos. Associávamos a força, o poder, a guerra, a razão e a agressividade a uma energia mais masculina, e a empatia, a emoção, o amor, a paz e a vulnerabilidade a uma energia mais feminina. Esta associação não tem de ser motivo de ódio. É uma associação inocente, que vem desde os primórdios da Arte, mas agora já há quem diga, “mas qual Arte se são todos uns heteronormativos prenconceituosos?”
As características psicológicas não devem ser de um só género, mas não é pela raiva que vamos resolver o assunto. A maioria dos homens que conheci até agora tinham mais dificuldade em expressar emoções do que as mulheres, talvez porque todos cresceram com uma cultura que apoiava o estrangulamento das tristezas e das frustrações, que aprendemos tão injustamente a chamar de fraquezas. Há cinquenta anos, a emoção era uma fraqueza que a sociedade só deixava que habitasse nas mulheres. Cinquenta anos depois, a emoção é uma fraqueza que já não se quer em ninguém. Não devemos dizer que uma mulher é emocional ou sensível, porque podemos ser acusados de ter ideias machistas. Mas será que não gostamos do feminino enquanto género, ou será que não gostamos do que o feminino representa (ou costumava representar)?
Os homens não podem ser demasiado emocionais, porque senão ninguém os leva a sério, mas também não podem ser demasiado frios, porque senão são uns “brutos”. As mulheres não podem ser demasiado emocionais, porque senão estão a compactuar com uma sociedade machista, mas também não podem deixar de ter emoções, porque senão parece que se transformaram num homem machista. Deixámos de poder ter características normais sem sermos apelidados de coisas que não queremos ser.
Tudo isto porque a sociedade passou a achar que palavras como irritado e irritada já não servem, era tempo de criar um “irritade”, uma espécie de mixórdia linguística, cujo intuito, penso eu, é fazer com que “todes” nos sintamos “respeitades”.
A maioria das coisas na vida resolve-se com bom senso. Eu posso não me sentir sempre como o estereótipo que a sociedade define como sendo homem ou como sendo mulher, mas sinto-me sempre a pessoa que, nos meus moldes, eu defini que sou. Uma das minhas dúvidas genuínas consiste no facto de não saber o que se sentem as pessoas que não se sentem homens nem mulheres. Mas sentem-se como? Algo que ainda não foi inventado? Se se sentem pessoas, para mim já está implícito que há algo nelas que é tanto de homem como de mulher. Para mim, tudo isso é beleza e custa-me entender o porquê de ser ofensivo termos dentro de nós tanto de homem como de mulher. Podemos ter um pai e uma mãe, duas mães, dois pais, dois avós, uma avó e um avô, mas todos temos um homem e uma mulher na nossa vida que admiramos por uma quantidade inumerável de características que os fazem ser dignos de admiração, e tenho a certeza de que nenhuma dessas características que os fazem ser admiráveis reside no facto de serem homens ou de serem mulheres.
“Es armas e es Barões assinalades
Que da Ocidental praia Lusitane,
Por mares nunca de antes navegades
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçades,
Mais do que prometia a força humane”
Isto pode muito bem ser uma adaptação d’Os Lusíadas daqui a menos de uma década. Se fica bonito? Não. Se faz sentido? Muito menos. Talvez o ideal de beleza feminina renascentista, tão bem declamado na poesia de Camões, passe a ser também uma afronta a esta sociedade confusa consigo própria, superficial até mais não. As novas regras da língua portuguesa podem muito bem estar à distância de um tiktok. Vamos acabar por incendiar as Bárbaras escravas, as Helenas das serras floridas, as Leonores pela verdura… só porque se tornou “ofensivo” a analogia da mulher com a pureza, a virtude e a beleza? Pureza, para quem leva a interpretação mais a sério do que um tiktok, é tudo o que esta sociedade deixou de ter. Pureza pode muito bem ser a genuinidade fresca do pensamento, a integridade do discurso, a revolta viva na procura pela justiça, a fuga da corrupção. Pureza e beleza não muito mais do que beleza física, e elogiar a pureza de uma mulher não deveria ser “proibido” nem considerado machista. Para as novas gerações que pensam que só as mulheres eram representadas na busca pela “pureza”, já um senhor chamado Tolstoi criou uma das personagens mais “puras” que talvez possamos encontrar na Literatura, um homem chamado Lévin, e mais não digo.
Vamos condenar à inquisição do século XXI o Amor de Perdição, o Romeu e Julieta, porque é óbvio que homens e mulheres já não podem morrer de amor uns pelos outros. E quem diz homens e mulheres, diz homens e homens, e mulheres e mulheres. Será que ainda existe esse amor sequer? Esse amor despreocupado em que não andamos constantemente armados em diplomatas da ONU que se querem certificar de que a relação é livre de qualquer preconceito, de qualquer machismo, de qualquer desigualdade. Os influencers (os novos terapeutas do mundo moderno) só falam de empoderamento, o famoso empowerment, para aqui e para acolá. Mas será que eles sabem que uma relação não é uma organização não governamental? Deixem os homens proteger as mulheres e deixem os homens ser piegas que precisam de colo. Deixem as mulheres ser sensíveis e deixem as mulheres ser rochas capazes de proteger os homens. Deixem-nos fazer tudo sem analisar toda a mais pequena amostra de preconceito, sem fazer rótulos, sem andar à caça de self love, self coscience, toxic masculinity, toxic femininity, etc. Ninguém está livre do preconceito, e é mais fácil admiti-lo para que o possamos combater.
Homens e mulheres passaram a guerrilheiros em campo de batalha. Homens e mulheres já não se querem em equipa, querem-se em combate pela aniquilação total de tudo o que alguma vez os caracterizou. Vamos aniquilar a delicadeza, a força, a agressividade, a sensibilidade, vamos aniquilar tudo porque não pode haver nada, mas mesmo nada, que nos identifique como “pessoas”. Talvez isto já nem seja sobre géneros masculino ou feminino, talvez já seja sobre um novo género – o autómato. O autómato que tem vergonha de tudo, que tem vergonha do amor e do ódio que estão, ambos, tanto dentro do homem como da mulher.
Para quem pense que concebo proibir alguém de não ter género nenhum, não faz o meu género proibir alguém de coisa alguma. Mas que é bonito ser mulher, que é bonito ser homem, que é bonito sermos as duas coisas sem cortarmos relações com nenhumas delas, é. Na psicopatologia e na psicologia, costuma-se dizer que normal e patologia são um contínuo, mas há quem diga que não. É uma discussão antiga. Mas não vejo melhor analogia para refletir sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Talvez possa ser um contínuo e talvez possamos gostar de ser uma coisa e a outra, sem querer destruir nenhum “conceito”. Porque conceitos só mesmo nos livros, a realidade é outra coisa.