O que se passou recentemente no Tribunal de Instrução Criminal era perfeitamente previsível e apenas ultrapassou a dimensão prevista. O que não evita que a explicação que encontro se afaste substancialmente de tudo o que tenho ouvido e lido.
Para que conste, acredito que, globalmente, a justiça portuguesa tem qualidade apesar da sua lentidão, haverá profissionais melhores e piores, mas na generalidade funciona com coerência global e recuso a ideia muito divulgada de que os dois juízes, Ivo Rosa e Carlos Alexandre, estão em polos opostos do nosso sistema de Justiça. A explicação fácil:
O juiz Carlos Alexandre enquadra-se claramente no regular funcionamento da Justiça portuguesa, sem grave conflito para além do protesto dos criminosos. Já o juiz Ivo Rosa é um elemento estranho do sistema, uma personalidade controversa, um verdadeiro ovni que se vê a si próprio como um defensor das vitimas e dos injustiçados. E, se não, vejamos:
Enquanto o juiz Carlos Alexandre tem, ao longo dos anos, assumido decisões que não geram controvérsia junto dos tribunais superiores, com decisões que podemos considerar globalmente coerentes, o mesmo não acontece com o juiz Ivo Rosa, que entra regularmente em conflito com o normal funcionamento dos tribunais. Por exemplo, não há muito tempo mandou libertar um terrorista considerado perigoso, que o Tribunal da Relação teve de voltar a mandar prender, e em 13 das suas últimas decisões, 12 foram revertidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Estamos, portanto, em presença de um juiz que é uma anomalia do sistema, que Ivo Rosa considera globalmente errado, razão porque mantém um diferendo com o Ministério Público, vendo-se a si próprio como um campeão libertador dos criminosos vitimas dos erros dos seus pares. O Processo Marquês corresponde, assim, à ambição megalómana de criar o seu momento de glória, para o que levou dois anos a escrever cerca de 6.728 páginas de bota abaixo do Processo Marquês.
Não existe, portanto, nenhum paralelismo entre os dois juízes e o caso do juiz Ivo Rosa é mais do domínio da psicologia do que da Justiça. Mas vejamos com maior pormenor as razões porque o juiz Ivo Rosa levou longe demais a sua vontade de fazer do Processo Marquês a oportunidade da sua obsessiva afirmação pessoal:
- A leitura pública nas televisões, com toda a pompa, do resumo dos seus dois anos de trabalho, mais de três horas, foi o momento de glória desejado. Infelizmente, iniciou a tarefa dividindo o Processo Marquês em vários processos autónomos, o que lhe retirou a coerência global desejada pelo Ministério Público, que colocou no centro da investigação os fluxos financeiros, uma lógica acusatória destruída por Ivo Rosa. Seguir o percurso do dinheiro era o fim central da investigação, que Ivo Rosa desconsiderou;
- O juiz Ivo Rosa usou uma linguagem provocatória em relação ao Ministério Público, que procurou ridicularizar, bem como relativamente ao seu colega Carlos Alexandre, o que revela mais um desejo de afirmação pessoal do que a procura da verdade;
- Por exemplo, o juiz Ivo Rosa não procurou encontrar nos autos quaisquer explicações para os milhões de euros das contas de João Paulo Pinto de Sousa, Carlos Santos Silva, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, quer quanto à sua origem, quer quanto ao seu destino;
- Igualmente, não valorizou o facto desses milhões de euros estarem na origem de um dos maiores desastres económicos e financeiros da história portuguesa, com a destruição de bancos e de grandes empresas. Recordemos apenas o caso da PT destruída por dois dos acusados;
- Perante a contradição entre as versões de Ricardo Salgado e de Helder Bataglia, Ivo Rosa não achou necessário que a questão fosse esclarecida em posterior julgamento e assumiu a posição de uma das partes. De facto, usou a fase da instrução como se de um julgamento se tratasse e o princípio “in dubio pro reo”, foi indevidamente assumido;
- Acresce, que foram quase exclusivamente utilizados os testemunhos de pessoas como Mário Lino, Fernando Teixeira dos Santos, Paulo Campos, Ana Vitorino, Carlos Santos Ferreira, Fernando Serrasqueiro, Armando Vara, Vitor Escária, Luís Horta e Costa, bem como os de outros militantes e simpatizantes próximos do PS, como se esses testemunhos pudessem constituir opiniões independentes num processo do qual fazem politicamente parte;
- Ivo Rosa valorizou a ausência de diligências junto de entidades brasileiras, como se políticos como Lula da Silva pudessem ser credíveis para tratar matérias em que eles próprios estavam a ser questionados no Brasil, seja nos mesmos casos ou em casos semelhantes;
- Ivo Rosa aparentou não compreender o amiguismo reinante na política portuguesa, nomeadamente no Partido Socialista, ao negar a possibilidade de existirem relações informais onde não existiam relações institucionais. Como se isso impedisse o Primeiro-Ministro de influenciar as decisões na Caixa Geral de Depósitos, no Ministério das Obras Públicas ou na PT. Aliás, bastaria recordar as conversas telefónicas que levaram a PT a apadrinhar o assalto à TVI, para conhecer o funcionamento da corrupção;
- O juiz Ivo Rosa procurou ainda, de forma um pouco infantil, encontrar uma lógica temporal entre os movimentos financeiros relativamente aos actos que lhes estiveram na origem, como se isso pudesse existir nos casos de corrupção em que as partes procuram, acima de tudo, esconder os seus actos;
- O juiz Ivo Rosa valorizou com grande argumentação a escolha do juiz Carlos Alexandre por meios manuais e não digitais, escolha que foi investigada e validada pelo Conselho Superior da Magistratura. Todavia não referiu, antes ignorou, a sua própria escolha, que só foi conseguida à quarta tentativa de um computador;
- Finalmente, dada a necessidade de encontrar explicação para os recursos financeiros de José Sócrates – questão com óbvios reflexos na opinião pública – Ivo Rosa elaborou a fábula de que o ex-Primeiro-Ministro terá sido corrompido pelo seu amigo Carlos Santos Silva. Trata-se de um delírio sem pés nem cabeça, já que a apagada personalidade de Carlos Santos Silva relativamente à personalidade de animal feroz de José Sócrates, não permite viabilizar a versão de Carlos Santos Silva ser o corruptor e o criador das condições materiais da corrupção, o cérebro da operação, e José Sócrates o mero executante. Para mais, aceite a ideia de que José Sócrates ajudou o seu amigo na obtenção de negócios, como é que o próprio Ivo Rosa negou essa mesma possibilidade nos casos da Venezuela, do TGV ou da Parque Escolar? De facto, apostou numa acusação que sabe não ter viabilidade prática e não terá sustentação em julgamento.
Durante todo o tempo da leitura, o juiz Ivo Rosa mostrou não compreender o modo de funcionamento das operações de corrupção, como se as relações criadas e a concretização operacional da corrupção tivessem os mesmos contornos e usassem os mesmos métodos das relações criadas em negócios legítimos e acordados com toda a formalidade entre as partes.
Em resumo, não conheço outras razões para o Juiz Ivo Rosa ter assumido as dores de José Sócrates, Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, para além das razões próprias da sua personalidade. Todavia, não excluo quaisquer outras causas que, a existirem, só o tempo permitirá identificar. Mas uma coisa é certa, o que se passou no despacho de pronúncia do Processo Marquês foi uma elaborada mistificação da realidade e uma desgraça para a Justiça portuguesa.