Os indultos em Portugal são atribuídos pelo Natal, quase que em provocação à religião cristã, já que no Natal se celebra, ou se devia celebrar, o nascimento de Jesus Cristo, que morreu pelos nossos pecados, menos pelos dos indultados pela Presidência da República, esses são perdoados politicamente. É que ninguém faz o mal voluntariamente, disse Sócrates, o filósofo.

Mas todos sabemos porque acontece no Natal, não é por razão cristã nenhuma. É que o Euro ou Mundial de futebol só ocorrem a cada dois anos, e até se pode dar o caso de Portugal não ser qualificado. Assim, no Natal as pessoas estão entretidas com as luzes e presentes e nem dão conta. Há quem lhe chame o ópio do povo. Qualquer um de nós se sentaria com João Rendeiro à mesa da consoada sem dar conta da sua presença, desde que um Black Friday qualquer acontecesse em breve.

Em todo o caso, parece que João Rendeiro não terá sorte neste indulto, nem admitindo que apenas cometeu, segundo diz, menos de 30% dos crimes de Ricardo Salgado. Justifica que não pagou a Renda a quem devia, no devido tempo. É um fraco forte. Nem mesmo com a esposa batizada de Maria de Jesus, não ajuda o nome pela época natalícia. Haveria, contudo, uma esperança para Rendeiro, é que se fosse preso já, poderia usufruir do perdão de pena no âmbito da pandemia de COVID-19, os casos estão a subir, as vacinas não são suficientemente esterilizantes. Cometeu ainda um erro crasso na entrevista que deu recentemente, foi o de elencar de forma tão célere os nomes dos seus três caninos, Joana, Clara e Boneca. Já não poderá invocar Alzheimer.

Deixemo-nos de pormenores, os 19 crimes não contam para nada. Podemos até perdoar o regozijo com que goza com a nossa justiça e com a nossa pátria. Afinal está no seu coração, e um pouco na sua carteira. Podemos até perdoar que vá à praia e ao ginásio, enquanto aos portugueses só lhes resta chuva e trabalho. Podemos até perdoar que se banhe em águas que, mais cedo ou mais tarde, na história, beneficiaram do sal das lágrimas de Portugal, algumas até recentes, dos 15% de portugueses que vivem abaixo do limiar de risco de pobreza.

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Perdoamos tudo em troca dos seus serviços sociais ou de consultadoria, algo leve, até pode ser em estilo digital. Falo de consultadoria no estímulo adicional à força, resiliência e compaixão do povo português, que é já talvez dos mais notáveis do mundo, pelo menos dos países evoluídos. Bem, evoluídos mais ou menos. Mais para o menos.

É que ninguém se lembrou da capacidade notável de João Rendeiro, que temo que quando se dê conta até lhe vá valer uma condecoração de Ordem de Mérito. Conseguiu manter como seu motorista um homem multimilionário. Ao mesmo tempo, temos médicos a despedirem-se em bloco por rotura dos seus serviços, coisa pouca, que fraquinhos. Ao menos tivessem conhecido João Rendeiro e não se importariam de fazer mais umas horas extra, a somar às centenas.

O motorista vendeu um prédio por 1,5 milhões de euros e comprou uma quintinha em Cascais por 1,15 milhões. Uma coisa completamente normal, segundo diz o seu antigo patrão. E mais, poupadinho, guardou os 350 mil restantes para alguma ocasião, não fosse o patrão já não Render tanto. Por compaixão, concedeu usufruto à mulher de Rendeiro na Quinta da Patina, não fosse a senhora patinar com a ausência do seu esposo. Convenhamos que a senhora precisava de espaço para fielmente depositar as 124 obras arrestadas pelo Estado e também fielmente deixar que se patinassem oito das obras para parte incerta, não se fossem estragar com a salitre de Cascais.

Do motorista de Rendeiro, fluoresce (atentem o nome, os mais desatentos) bondade ou sentido de responsabilidade de um bom empregado. É um exemplo para os empregados do nosso país e um caso de estudo para a Ciência em geral e para a Psicologia em particular. É como imaginarmos encontrar Sócrates (não o Filósofo, o não-engenheiro), com a fortuna acumulada da sua querida mãe e amigos, a trabalhar numa destas cadeias de fast-food ou supermercados que pagam o ordenado mínimo. Ou um caso mais extremo ainda, que o encontrássemos a trabalhar num hospital.

Já dizia Sócrates, o não-engenheiro, que campanhas são poesia, mas governar é prosa. Rendeiro é tudo isso e mais romance, comédia e suspense. É que ao final não sabemos se irá prescrever, ser perdoado, ser indemnizado ou pagar fiança com o produto do roubo. Romance porque faz questão de escolher um local onde se fala português e manter o fuso horário da sua nobre pátria no relógio.