Os ancestrais do ex-Presidente da República Dr. Jorge Sampaio, chegados aos Açores no século XIX, não possuíam qualquer genealogia que remontasse a Portugal, não ostentavam apelidos portugueses (nem mesmo os portugueses-hebraicos que se colhem dos parcos registos do século XV) e igualmente não diziam uma palavra em ladino. Ninguém pôs em dúvida que esta família era de origem portuguesa. A tradição judaica e a memória familiar tinham valor.
Marrache, Ehiah, Bensliman, Amie e Bensaude (do inglês gibraltino “afortunado”), oriundos de Rabat, Casablanca e Gibraltar, eram apelidos que pouco tinham a ver com o novo país em que assentavam as suas vidas e no qual haveriam de prosperar com muito trabalho. Os citados apelidos eram os únicos que a parca genealogia da avó materna do Dr. Sampaio, de nome Sara Bensliman Bensaude, filha e neta dos então “requerentes” da nacionalidade portuguesa, permitia alcançar, quando todos chegaram ao bonito arquipélago português. Reduzida a duas gerações, aquela genealogia era tão pobre que nem sequer identificava os anos de nascimento dos familiares imediatos de Sara: Jacob Bensliman e Aron Bensaude.
Memória familiar e tradição judaica eram as provas da origem portuguesa dos recém-chegados que, atrás de si, deixavam as comunidades sefarditas tradicionais marroquina e gibraltina. Em cinco séculos, estas haviam beneficiado de milhares de casamentos entre judeus locais e judeus de origem portuguesa e castelhana, assim misturados pelo sangue, com preponderância dos megurashim (“expulsados”) de Sefarad, pela sua grande cultura e pelo seu peso numérico. Ali nascia, como noutros países do Norte de África e do antigo Império Otomano, uma enorme “Spanish and Portuguese community”.
Andou muito bem o Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro, da ceifa do PSD e do CDS, cujo preâmbulo considerou os familiares do ex-Presidente da República e os demais fundadores da moderna comunidade judaica portuguesa (marroquinos e gibraltinos sem genealogia até Portugal, sem apelidos portugueses, sem prática do ladino) como megurashim.
Foi muito bem certificado pela Comunidade Israelita de Lisboa o caso de Patrick Drahi, que é seguramente semelhante ao dos familiares do Dr. Jorge Sampaio. Apesar de não beneficiar de apelidos portugueses, de não falar ladino e de não possuir qualquer genealogia até Portugal (mas uma pobre genealogia de três ou quatro gerações), Drahi é sem dúvida um judeu sefardita de origem portuguesa.
Os seus apelidos de família – Adrehi (Drahi), Sicsu e Amou –não constam da (muito incompleta) lista de apelidos de judeus que residiam em Portugal no século XV, mas claramente são apelidos de famílias sefarditas tradicionais de Marrocos e, mais do que isso, de famílias que regressaram a Portugal após a Inquisição e que são referidas no preâmbulo do predito Decreto-Lei como os “expulsados” de outrora.
A CIP/CJP tem registos dos Adrehi nos cemitérios da comunidade judaica dos Açores: Ponta Delgada, Terceira, Angra do Heroísmo, Horta e Faial. Membros da família Sicsu viveram e foram sepultados no cemitério de Faro. Os Amou igualmente regressaram a Portugal, e viveram em muitos lugares, até no Porto, quando a sombra do Santo Ofício desapareceu. Acresce que Patrick Drahi, com nacionalidade francesa, é um Cohen de altos méritos no mundo judaico, que deve ser estimado e protegido.
Marrache, Ehiah, Bensliman, Amie, Bensaude, Drahi, Sicsu, Amou e Cohen constam entre os apelidos de famílias sefarditas tradicionais outrora expulsas de Sefarad. Estes são exemplos dos casos – 99% dos casos – que a CIP/CJP certificou durante sete anos e que jamais poderiam validamente submeter-se ao critério de genealogistas, muito menos ao de não-judeus sem conhecimento da tradição judaica.
No 1% de casos sobrantes encontram-se certamente alguns judeus da Europa Central e do Leste, cujas certificações levaram em conta a memória familiar, as latitudes percorridas, o historial de apelidos, a tradição judaica testemunhada por instâncias judaicas internacionais reconhecidas pelo Grão-Rabinato de Israel e, muitas vezes, a desnecessidade material da nacionalidade portuguesa por parte dos concretos requerentes.
Há dias falou-se com escândalo na certificação do Rabino Alexander Boroda. A Direcção da CIP/CJP teve conhecimento do caso nesse mesmo dia porque não intervém no funcionamento do departamento de certificação, no qual confia. Trata-se de um cidadão americano, com passaporte dos Estados Unidos, cuja memória familiar foi certificada por Berel Lazar – Chefe-Rabino da Rússia, igualmente americano, um dos mais reputados rabinos do mundo, e cujos apelidos constam de publicações como o Dicionário Sefaradi de Sobrenomes, de Paulo Valadares, Rio de Janeiro, 2004.
Aquele processo pode ou não merecer aceitação por parte do Governo. O artigo 24.º-A do Regulamento da Nacionalidade é claro. O Governo tem o poder discricionário de dar ou não a nacionalidade a qualquer cidadão, seja sefardita ou de origens sefarditas. A Conservatória tem o dever de verificar as provas de sefardismo do requerente, pese embora o seu total desconhecimento do mundo judaico. Porém, nem por isso o rabinato do Porto tem de mudar a sua opinião quanto ao sentido da sua decisão, do seu parecer, que seria idêntico num caso de migração para Israel.
Voltando aos sefarditas puros, em 6 de dezembro de 2021, muito antes de se afastar do processo de certificação (ou seja, muito antes de saber que se fazem buscas e indiciações gravíssimas, logo noticiadas nos jornais e nas televisões, para destruir a reputação das instituições e das pessoas, com base em denúncias anónimas), a CIP/CJP deu as seguintes sugestões ao Governo:
“O mundo judaico sefardita ou ashkenazita só depende do critério seguro da tradição e por isso a migração para Israel está condicionada por um parecer do Rabinato-Chefe local (que por sua vez está conectado com os rabinatos ortodoxos de todo o mundo), nunca por documentos impossíveis ou inúteis ou por genealogias que, do ponto de vista judaico, são apenas desenhos falsificáveis. O Estado de Israel não teria judeus se a migração fosse condicionada a meios de prova similares aos previstos no Projecto do Governo, que está totalmente desfasado do mundo judaico, prescinde do judaísmo enquanto genealogia-cultura-religião, dos rabinatos, das latitudes, dos apelidos, das ketubot, das teudat nuisin, dos costumes, do antigo idioma familiar e da tradição de comunidades que estiveram sempre em perigo, sem estabilidade e sem governos centrais.
É fulcral que elementos da Conservatória comecem a trabalhar com as comunidades na avaliação dos processos, para aprenderem, por exemplo, que ser judeu é uma genealogia matrilinear e que uma família sefardita não Sefarad da Tunísia (como os Cohen de Djerba, que já ali habitam há 2500 anos) só se torna habilitada à certificação se, por via de casamentos, for também descendente de judeus Sefarad, como os Abitbol, Amzalaga, Athias, Benitah, Benarus, Bensabat, Lasry, Sebag, Toledano, Zagury e muitas outras.
O certificado digital, que deve constar da plataforma electrónica/digital, tal como a documentação de suporte, deve ser inspirado no caso da família do ex-Presidente da República Dr. Jorge Sampaio e deve conter três passos:
- Provas.
- Família sefardita tradicional. Provas.
- Comunidade judaica de origem portuguesa. Provas.
Estes três passos foram desenhados unicamente em favor da melhor compreensão da Conservatória, para tentar dividir um processo que, na realidade, é sempre analisado no conjunto. Os três pontos acabam por se englobar conjuntamente. O requerente é de uma família judia Sefarad: uma família de megurashim marroquinos.
- Provas de que o requerente é genealogicamente judeu, designadamente, ketubot dos pais e dos avós, teudat nisuin no caso de ter casado em Israel e/ou certificado de rabino com credibilidade haláchica reconhecido pelo Grão Rabinato de Israel;
- Provas do sefardismo de “Sefarad, que é aferido (i) por via dos “apelidos”, (ii) da “memória familiar” afiançada por rabinatos reconhecidos pelo Grão-Rabinato de Israel, (iii) das “latitudes” documentadas por títulos de residência oficiais – de Estados de partida, no caso, Marrocos, ou destino, no caso, Israel – e eventuais certificados de rabinatos, sinagogas ou cemitérios e/ou (iv) da pertença até à actualidade a uma comunidade/sinagoga “Sefarad”.
Caso divirja do juízo contido num certificado emitido por alguma das comunidades, a Conservatória deve solicitar à entidade visada um esclarecimento mais cabal, por escrito, devendo todo o expediente constar, na plataforma, do processo individual do requerente.”
Assim teria sido convenientemente garantido o futuro da lei que concedia a nacionalidade aos judeus de origem sefardita portuguesa. Na presente década, a União Europeia aposta amplamente no reflorescimento da vida judaica no Velho Continente. As contas serão feitas no ano de 2030 em termos de vida e cultura judaicas em cada país.
Entretanto, a sinagoga do Porto está vibrante de vida como há 500 anos se não via, o cemitério judaico outrora destruído pela intolerância religiosa deu lugar a um novo, existem centros judaicos para promover a interação entre os judeus mais jovens, a Portuguese Jewish School está prestes a ser inaugurada, a comunidade judaica possui restaurantes, lojas e um hotel Kosher, o Museu Judaico exibe frequentemente filmes sobre a história dos judeus em Portugal (que alcançarão também a televisão), o Museu do Holocausto recebe cerca de 300 alunos de escolas por dia e as relações com católicos e muçulmanos são melhores do que nunca.