É preciso uma reforma em algumas áreas. É preciso fazer alguma coisa em alguns aspectos.
Henrique Araújo
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, declarações prestadas em Cabo Verde, em 6 de Maio de 2024

Como já foi abundantemente constatado, há neste momento entre nós um relativo consenso de que um dos maiores problemas do país é o da Justiça, no que parecem estar de acordo tanto os principais partidos, como relevantes sectores da sociedade, como deu provas o recente “Manifesto dos 50”.

Ciente das divergências de opinião e perspectiva, dentro e fora dos partidos e dentro e fora das próprias listas de signatários de semelhantes documentos, sobre “que reformas fazer” e sobre “como proceder”, em complemento e num exercício de concretização do método recomendado em anterior artigo, a minha intenção é, antes de mais, a de responder à questão de saber se é preciso uma “Reforma da Justiça” ou se são precisas “Reformas da Justiça”; uma vez respondida essa questão, pretendo divulgar um contributo condizente com tal resposta.

  1. Para muitos dos intervenientes que se têm pronunciado sobre o assunto, é necessária uma Reforma da Justiça, ou seja, uma reforma estrutural, a envolver tempo, comissões, consensos alargados e até eventuais pactos de regime (diga-se: já tentados, sem sucesso, no passado). Diversos outros, porém, como a antiga procuradora e actual Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça Teresa Almeida – sem deixar de reconhecer que são as pessoas que fazem a diferença, mas que é às organizações que cabe nivelar por cima e difundir as boas práticas – consideram saudável «o consenso político de não abanar o sistema, introduzindo apenas algumas correcções», dando depois exemplos de práticas abusivas e registando bons e maus resultados, à luz da experiência [1].
    Perante estas duas alternativas, vista a receita acolhida no texto a que acima me refiro, no qual se defendia que “deviam ser feitas dezenas, centenas de pequenas reformas, a um ritmo acelerado”, não cabe dúvida de qual é a posição para a qual decisivamente me inclino.
  1. Ora, por entender há muito que é dessa forma que se deve proceder e por me preocupar há muito com o funcionamento da Justiça em Portugal [2] – serviço essencial ao qual, na melhor das hipóteses, nem um terço dos Portugueses tem reais possibilidades de aceder! – , remeti à Direcção do PSD, em Janeiro último, um conjunto de 10 propostas de reformas da Justiça, segundo o método das pequenas correcções, depois de no mês anterior ter partilhado pessoalmente uma primeira versão desse texto com alguns parlamentares do PS, meus distintos Colegas de Faculdade.

Uma vez que esse texto vem a propósito e é de interesse público, dou-o em seguida a conhecer aqui na íntegra (incluindo as correspondentes notas).

REFORMAS DA JUSTIÇA

Segundo o método de pequenas correcções

Gerais

  1. Atribuição de total autonomia administrativa e financeira ao Conselho Superior de Magistratura, com inerente transferência de responsabilidades e poderes até agora confiados ao Ministério da Justiça.
  2. Imediata aprovação dos decretos-leis de desenvolvimento da autonomia administrativa e financeira dos Tribunais da Relação.
  3. Revisão da Lei do Tribunal Constitucional, com pelo menos as seguintes duas alterações fundamentais:
  • Previsão de que o Tribunal Constitucional possa, no seu Regulamento Interno, prever a existência de audiências públicas, bem como a admissão e configuração do regime do amicus curiae, nos processos de elevada transcendência constitucional, assim considerada por proposta do Presidente, confirmada por maioria absoluta dos Juízes do Tribunal Constitucional;
  • Previsão do efeito meramente devolutivo nos recursos de constitucionalidade previstos no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional [3].
  1. Aprovação de uma directriz legislativa contra a prolixidade das peças processuais, de todos os actores processuais, magistrados incluídos.
  2. Proibição legal da greve dos juízes [4] e limitação da greve dos magistrados dos Ministério Público.
  3. Recrutamento de engenheiros de processos para os principais tribunais.

 

Justiça Penal

  1. Limitação dos mega-processos aos casos estritamente necessários, exigindo para o efeito resolução fundamentada do Procurador-Geral da República.
  2. Fortalecimento e responsabilização da função e do papel da hierarquia do Ministério Público, com exigência designadamente da apresentação de um relatório anual à Assembleia da República por parte da Procuradoria-Geral da República.

Justiça Administrativa

  1. Instituição de um mecanismo transitório [5] alternativo [6], de natureza voluntária, para a parte que não seja a entidade pública no processo, com vista ao desembaraço da acumulação e da excessiva duração dos processos na primeira instância dos tribunais administrativos.
  2. Rápido provimento dos juízes em falta nos tribunais administrativos.

[1] Sucede também que, por exemplo, no “Manifesto dos 50”, aquilo que aí mais se denuncia não são as estruturas nem as leis, mas sim as práticas, designadamente as do Ministério Público.
[2] Relativamente à Constituição, a alteração mais importante, que já tive oportunidade de sugerir (aqui), tem a ver com a introdução no artigo 20.º, n.º 5, de uma regra que reforce os poderes de conformação processual do juiz (à semelhança do que há muito é tradição nos tribunais britânicos), na recusa de diligências abusivas ou que de qualquer outro modo ofensivas dos princípios cardiais enunciados nesse artigo – uma tal alteração, juntamente com a modificação do efeito do recurso para o Tribunal Constitucional (ou sua substituição pelo reenvio prejudicial), teriam, só por si, a virtualidade de reduzir para menos de metade os tempos para que um processo como o da “Operação Marquês” chegasse a julgamento.
[3] Esta medida permite, de uma assentada, realizar os seguintes quatro fins: 1) acelerar os tempos da Justiça; 2) racionalizar o acesso dos particulares e empresas ao Tribunal Constitucional; 3) pôr um travão sério a que haja “uma Justiça para pobres e uma Justiça para ricos”; 4) pôr termo a uma das mais perversas e discriminatórias manobras dilatórias existentes no nosso sistema.
[4] Sobre o problema, por todos, José de Melo Alexandrino, «A greve dos juízes – segundo a Constituição e a dogmática constitucional», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento, vol. I, Lisboa, 2006, pp. 775-777.
[5] Propondo-se para o efeito um prazo de 5 anos, a contar da entrada em vigor da respectiva lei.
[6] Como pode ser a opção pelo recurso aos tribunais comuns e às normas do Código do Processo Civil, com as necessárias adaptações, parametrizadas por lei.

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