Privados, há quatro anos, da incomparável pena de Vasco Pulido Valente, a cuja memória me curvo com saudade, e afastando propositadamente controvérsias, argumentações, factos e dados da presente “campanha eleitoral” – realidade em que os partidos políticos portugueses acabaram por encontrar um modo de vida “habitual” – , pretendo evocar o pensamento desse nosso grande analista sobre os contornos fundamentais da resposta plausível que os eleitores darão no próximo dia 10 de Março, à luz das afirmações dos intervenientes políticos principais produzidas ainda no seu tempo de vida, depois de um breve percurso pelos factos.

1 Uma tese de Vasco Pulido Valente

Na sua última entrevista, concedida à Egoísta, em Outubro de 2019[1], em resposta à pergunta de Filipe Santos Costa “temos sorte?”, Vasco Pulido Valente respondeu: Não temos sorte, temos as condições. Temos as condições para uma democracia funcional, liberal. E o eleitorado português refugia-se sempre numa força, que é a força que dá estabilidade ao regime. Agora é o PS. A “geringonça” instaurou o PS como o grande árbitro do sistema. Ou seja, voltámos ao que o PS era no princípio. O Mário Soares governou assim muito tempo até o PCP se decidir a votar com a direita. E o António Costa vai governar até os dois extremos se decidirem a alinhar contra ele. O que será muito difícil – o que cair na asneira de se aliar à direita destrói-se[2].

Resumindo, a principal tese de Vasco Pulido Valente que pretendo aqui recuperar é a de que o eleitorado português se refugia sempre na força que dá estabilidade ao regime.

No caso das eleições de 10 de Março de 2024, potencialmente, o eleitorado apenas se pode refugiar em duas forças[3], agora arrumadas em dois blocos políticos: o bloco presidido pelo Partido Socialista (agregando os demais ou alguns dos demais partidos à sua esquerda) e o bloco presidido pela Aliança Democrática em (necessária) parceria com a Iniciativa Liberal.

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Inexistindo factos e sobretudo inexistindo declarações similares por parte dos líderes da direita (anteriores e actuais), façamos o exercício de verificação da aplicabilidade da referida tese, no que respeita ao primeiro desses blocos políticos, comandado pelo PS, agora sob a liderança de Pedro Nuno Santos.

2 Os factos

A respeito dos factos, são relevantes e relativamente incontroversos designadamente os seguintes:

  • O governo da “geringonça”, apesar do choque inicial e das muitas profecias em contrário, conseguiu cumprir toda a legislatura (2015-2019);
  • Pode-se afirmar que o reforço da votação no Partido Socialista nas eleições legislativas de 2019 (que levaram a novo governo minoritário do PS, com a diferença de ser agora o partido vencedor das eleições)[4], além da correspondência na tese de Vasco Pulido Valente, teve o efeito adicional de ratificar, para aqueles que ainda tivessem essa dúvida, a chamada “quebra do muro” ocorrida em 2015, relativamente ao papel dos partidos da esquerda no sistema;
  • O reforço do Partido Socialista não foi contudo acompanhado da assinatura de idênticas “posições conjuntas”, o que levou a uma maior informalidade no apoio parlamentar ao Governo por parte dos partidos da esquerda, até se chegar à ruptura, com a não aprovação do segundo Orçamento de Estado dessa legislatura, e à consequente dissolução da Assembleia da República, no final de 2021;
  • Perante semelhante atrito no bloco das esquerdas, nas eleições legislativas de 2022, o eleitorado viria a conceder uma maioria absoluta ao Partido Socialista[5];
  • Sucedeu, no entanto, que o Governo maioritário saído dessas eleições, foi o mais impreparado e o mais fraco dos três governos do Partido Socialista: (i) começou por não saber aproveitar os dois meses que a repetição da eleição no exterior lhe proporcionou; (ii) deu-se ao luxo de não apresentar sequer um Programa de Governo, adoptando “como tal” o programa eleitoral[6]; (iii) apresentou uma equipa ministerial de recurso (sem deixar de afastar bons Ministros do anterior elenco); (iv) cedo por isso se começou a envolver em problemas de toda a espécie; (v) essa série de problemas levou a que, em menos de dois anos, fossem abandonando o Governo mais de uma dezena dos seus membros, entre os quais se contou o seu actual líder, no epicentro da crise porventura mais grave, pitoresca e duradoura que esse Executivo atravessou;
  • Tudo isso a terminar, a 7 de Novembro de 2023, com o (inesperado) pedido de demissão do Primeiro-Ministro, prontamente aceite, e com mais uma dissolução do Parlamento.

3 As declarações dos dois principais líderes da esquerda

Se estes são alguns dos factos de maior relevo, importa agora olhar brevemente às declarações políticas de fundo produzidas, quando eram passados mais de dois anos de governo da “geringonça”, a respeito da natureza e do valor dessa solução governativa[7], por aqueles que são hoje os dois principais líderes políticos da esquerda[8].

Pedro Nuno Santos, então Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, fez publicar no jornal Público, em 15 Fevereiro de 2018, um artigo intitulado Os desafios da social-democracia.

Começando por constatar que, em 2015, tinha ocorrido uma viragem histórica na democracia portuguesa, a primeira grande tese do artigo era a de que o sistema político passou a ter agora dois polos distintos, o que promove a dialética entre visões diferentes da sociedade, facilita as escolhas do eleitorado, torna mais difícil a emergência de extremismos, permite imprimir mudanças profundas nas políticas públicas [de bem-estar] e aumenta a autonomia estratégica do Partido Socialista. Em segundo lugar, contra a hegemonia do neoliberalismo (que se mantém intocada), reclama a redefinição da linguagem, especialmente no que respeita ao significado das “reformas” e da ideia de “liberdade”. Por fim, depois de aludir à pobreza programática do debate que existira nas eleições internas do PSD, afirma que o desafio da social-democracia, num mundo em rápida mudança, continua a ser «a liberdade, a igualdade e a prosperidade dos cidadãos» e que «na resposta a este desafio a gramática política e moral que distingue a esquerda da direita continua a assentar: na defesa do papel do Estado no desenvolvimento da economia (…); na protecção e no reconhecimento do valor do trabalho (…)», sendo em nome destes princípios que «devemos garantir que a mudança política conseguida em 2015 seja um efectiva viragem e não apenas um parênteses na história do PS e da democracia portuguesa»[9].

Dois dias depois, no mesmo jornal, Mariana Mortágua, então deputada do Bloco de Esquerda, fez publicar um artigo de resposta, intitulado O desafio de Pedro Nuno Santos ao PS.

Começando por argumentar que o artigo de Pedro Nuno Santos se dirigia a um interlocutor errado, a grande afirmação do artigo da então deputada é a de que «[a] solução política desta legislatura é essencialmente defensiva, com limitados ganhos para a classe trabalhadora e que não resolveram os problemas estruturais do país. Não é menos importante por isso, mas é o que é: um acordo político imediato, longe de um projeto estratégico para redefinir Portugal». A segunda (contra-)afirmação de Mariana Mortágua é esta: «A social-democracia já não existe». E a sua conclusão – que citarei na íntegra – diverge também, pelo menos em parte, da do seu interlocutor: «Em suma, a mudança política em 2015 abriu um parêntesis na ofensiva neoliberal em Portugal – conduzida à vez por PS e PSD ao longo de mais de três décadas – e que teve o seu expoente máximo nos anos da troika. Para que não se feche, este parêntesis deveria deixar de sê-lo para se tornar naquilo que P.N.S. chama “uma viragem”. Mas implicaria opções precisas, hoje ausentes e, portanto, uma diferente relação de forças entre o PS e a esquerda»[10].

4 Um contrapeso de relevo

Voltemos, por fim e por um instante ainda, a Vasco Pulido Valente.

Na parte final da entrevista de vida que concedeu ao Expresso, em 11 de Junho de 2016[11], entrevista essa a que o Semanário deu o significativo título Vasco Pulido Valente: “Portugal é difícil de reformar, mas é reformável”, há um breve diálogo, a todos os títulos, digno de ser transcrito:

Tira-se a conclusão [de] que isto não tem emenda?
É muito difícil. Vai demorar muito tempo e vai trazer muito sofrimento.

E a emenda é compatível com a democracia?
Não é facilmente compatível. Pelo menos implica algumas restrições à democracia.

Está a pensar em quê?
Estou a pensar numa lei dos partidos diferente. Com uma lei eleitoral diferente.

Ora, ouvindo, no início desta semana, Luís Montenegro responder da forma como o fez à (modestíssima)[12] proposta da criação de um círculo nacional de compensação, que lhe foi feita pelo líder da Iniciativa Liberal, isso diz-nos duas coisas: a primeira é a de que a direita, apesar de se reclamar da mudança, afinal ainda não acordou totalmente da crise há muito diagnosticada; a segunda é de que os eleitores inconformados (tanto os do PSD como os do PS, partido que tão-pouco tem dito seja o que for sobre a reforma do sistema político) sempre poderão voltar os olhos para os novos partidos que mostrem um genuíno impulso reformista nesse domínio (como é o caso, respectivamente, da Iniciativa Liberal e do Livre).

[1] Entrevista recuperada por este jornal, em 21 de Fevereiro de 2020 (e que pode ser lida aqui).
[2] Mais adiante, na mesma linha, acrescentaria: os portugueses têm a noção, mesmo que vaga, da fragilidade do país. O Passos Coelho e o Paulo Portas tiveram [em 2015] uma votação significativa, que não teriam em mais nenhum país da Europa. Ganharam as eleições. E porquê? Deram segurança e as pessoas têm medo de mudar. Quando se viu que eles não podiam formar Governo mas o António Costa podia fazer aquela aliança [com PCP e BE], o PS era o garante da segurança. Quando as pessoas são pobres, o maior valor é a segurança. Quando o Governo Passos-Portas caiu, quem ficou a garantir a segurança às pessoas foi o PS.
[3] É um facto indesmentível que o CHEGA, não tanto pelo seu programa, mas pela sua praxis, inconsistência discursiva e desconsideração por alguns dos valores básicos da comunidade portuguesa (nomeadamente no que respeita à abertura e à tolerância), nunca poderia assumir esse lugar (de “força que dá estabilidade ao sistema”), razão pela qual, querendo, terá ainda um largo caminho a percorrer para conseguir entrar na competição de que trata o nosso Autor.
[4] Segundo Vasco Pulido Valente, o PS de António Costa não precisava de uma maioria absoluta nestas eleições (cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 289).

[5] Confirmando, desta vez, duplamente a tese de Vasco Pulido Valente: no reforço do único partido que podia dar estabilidade ao sistema, perante às características da liderança de Rui Rio (cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem…, p. 288), bem como nas pesadíssimas derrotas sofridas nessas eleições pelo Bloco de Esquerda, pela CDU e pelo CDS.

[6] Solução na qual o Presidente da Assembleia da República, como guardião parlamentar da Constituição (Miguel Galvão Teles), não deveria ter consentido.

[7] Vasco Pulido Valente teve oportunidade de se pronunciar múltiplas vezes sobre o assunto (para uma síntese do seu pensamento, a meio dessa experiência, cfr. «Entrevista a Vasco Pulido Valente: a Geringonça vista pelo Homem que a Baptizou», concedida a Miguel Pinheiro, in Observador – Especial Aniversário, n.º 3, Maio de 2018, pp. 20-24; para um juízo, no final, João Céu e Silva, Uma longa viagem…, p. 289); pela minha parte, desde a 2.ª edição dessa obra, em 2017, tenho deixado o juízo sobre esse problema em aberto (cfr. José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, p. 53).

[8] Nas últimas sessões que manteve com João Céu e Silva, os dois temas que mais o afligiam nessas conversas eram a sucessão de António Costa e a insuficiência da resposta do espectro partidário tradicional às aspirações do eleitorado: (i) apontando uma eventual sucessão no PS para daí a cinco ou seis anos (ibidem, p. 273) e pondo de lado a ala moderada do partido, «por perda de toda a relevância conjuntural e histórica» (ibidem, p. 273), Vasco Pulido Valente não tinha dúvidas em afirmar: «Pedro Nuno Santos é uma possibilidade clara de radicalização do partido» e não obstante não ter uma visão do futuro inteiramente exacta, ele propõe «políticas que têm futuro – ou seja, responde mais à sociedade que temos do que qualquer outro político em Portugal» (ibidem, p. 273); (ii) por sua vez, quanto à direita, numa conversa do ano anterior, a tese de Vasco Pulido Valente era a de que a direita, não por acaso, há muito entrou em crise: «a direita não tem um programa, um fim ou um destino. Nada. (…) a herança de uma unidade de uma direita transformadora e reformista que é absolutamente fundamental».

[9] Público, 15 de Fevereiro de 2018, p. 44 (também disponível aqui).

[10] Público, 17 de Fevereiro de 2018, p. 46 (também disponível aqui).

[11] Entrevista concedida a Ângela Silva e a Filipe Santos Costa, disponível aqui (objecto de republicação, com outro título, em 21 de Fevereiro de 2020 (disponível aqui).

[12] Se comparada com aquilo que realmente está há décadas por fazer (como procurei recentemente demonstrar neste jornal, em texto disponível aqui), por mera falta de interesse das lideranças (que não de muitos destacados militantes) dos dois grandes partidos do sistema – que vão ter de ser obrigadas pela sociedade a rever a sua posição.