Aos 40 anos, Franz Kafka passeava por Berlim quando encontrou uma menina que chorava porque tinha perdido a sua boneca favorita. Procuraram-na juntos, mas sem sucesso. Kafka prometeu-lhe voltar para procurá-la de novo.

No dia seguinte, não encontrando a boneca, Kafka entregou à menina uma carta onde se podia ler: «Por favor, não chores. Fui de viagem para conhecer o mundo. Vou escrever-te sobre as minhas aventuras. Assinado: A tua boneca.» Assim, durante os seus encontros, Kafka lia àquela menina as cartas da boneca, histórias de aventuras incríveis, que ela achava adoráveis.

Um dia, Kafka comprou uma boneca nova e ofereceu-a à menina, contando-lhe que a amiga havia por fim regressado a Berlim. «Não se parece nada com a minha boneca», disse a menina. Depois entregou-lhe uma outra carta na qual a boneca escrevia: «Estou diferente: as minhas viagens mudaram-me. Estou diferente. Estou diferente. Estou diferente» A menina abraçou a nova boneca e levou-a, feliz, para casa.

O desejo é um movimento e não tanto um lugar. Mais: a memória dessa longa e atabalhoada ânsia denuncia um peculiar tipo de relação com o resto do mundo: a experiência rejeitada em favor da recordação, o centro rejeitado em favor da margem. Uma intuição de beleza a pairar muito para lá do seu alcance, para ser refletida e ponderada. A reflexão torna-se, à sua maneira, um outro tipo de posse. Uma reflexão é irresistível porque é um paradoxo: um oposto que é o mesmo, um outro que é também claramente o nosso eu.

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A antiga tendência grega para o pensamento antagónico – por um lado x, mas por outro lado y; os gregos investiram, mas os troianos rechaçaram; Οὐρανία men Αφροδίτη (ouranía Afroditê), o amor espiritual, Πάνδημος de Αφροδίτη (pandêmos Afroditê), o amor comum que se encontra pelas ruas, como nos diz Platão – reflecte-se na estrutura da própria linguagem. Uma das primeiras coisas que se aprende quando se estuda grego clássico é a existência de dois monossílabos intraduzíveis – partículas e não propriamente palavras – cuja presença em qualquer frase nos informa sobre a textura dessa mesma frase, o seu ritmo e, em última análise, o seu significado. Cada uma destas duas partículas é sempre a segunda palavra de qualquer oração em que apareça. A primeira destas partículas, que é transliterada como men, é sempre a segunda palavra da primeira oração (a parte x de uma frase) e a outra, que se translitera como de, é sempre a segunda palavra da segunda (a oração y). Quando nos iniciamos no estudo do grego, somos instruídos a traduzir a primeira partícula como «por um lado» e a segunda como «por outro», embora cada uma delas, por si só, não signifique nada; na verdade, apenas acrescentam sabor e estrutura a uma frase.

Este tique sintático confere à linguagem um ritmo plácido e balançado quando alguém a lê. Os gregos men investiram; os troianos de resistiram; ouranía men Afroditê… pandêmos de Afroditê. Platão escreve: mias men ousés heis an én Eros; epei de dê duo eston… «Se houvesse uma men Afrodite, haveria apenas um Eros; mas como de há, de facto, duas…»

Se se passar bastante tempo a ler literatura grega, este ritmo começará a estruturar igualmente o nosso pensamento sobre outras coisas: o mundo men que nos foi oferecido e o mundo de em que escolhemos habitar; a gratidão men pelo que foi e o lamento de pelo que poderia ter sido; o arbítrio men a que juramos confiar cada uma das nossas decisões e o acaso de que afinal domina as nossas vidas; o regozijo men com a ordem e a pulsão de pelo caos e pelo abismo.

O que é interessante nesta particularidade grega, porém, é que esta sequência mende nem sempre veicula necessariamente uma ideia de oposição. Por vezes – muitas vezes, na verdade – pode simplesmente ligar duas noções, quantidades ou nomes, unindo em vez de separar, multiplicando em vez de dividir: «Fedro men fez um discurso neste sentido, e depois de alguns outros falaram também», informa-nos o narrador do Banquete de Platão, um diálogo sobre as possibilidades do amor. Intrínseco a esta linguagem, é, pois, o reconhecimento do papel criativo do caos, aquele antiquíssimo e úbere conflito entre as coisas. O grego é uma das poucas línguas capazes de ver como o x e o y, parecendo opostos, podem fazer parte de uma sequência, podem ser inerentes, de alguma forma, a um todo – um todo que pode ser um conceito, uma cultura, uma pessoa.

A gramática grega, ao contrário da maioria das outras – ao contrário do latim, por exemplo, a língua dos práticos romanos – tem um modo verbal especial chamado «a voz média», que não é nem ativa nem passiva, mas, de certa forma, ambas ao mesmo tempo: uma voz em que o sujeito do verbo é também o seu objeto. Diadoumenos, por exemplo – uma das mais conhecidas representações da estatuária grega – é um particípio na voz média: aquele que ata a cabeça/cuja cabeça está a ser atada, o belo rapaz que ata uma fita à própria cabeça/em cuja cabeça uma fita está a ser atada, adornando e adornado, sujeito e objeto. A identidade, como tão bem sabiam os gregos, é um paradoxo. Aquele sítio onde decidimos regressar – o local do paradoxo – revela-se afinal o local da mais antiga e fiel permanência: acolhe quem somos e quem fomos, as nossas escolhas e os nossos arrependimentos, os rasgões e os pontos suturados a agulha, tempo e paciência.

É a improbabilidade que torna a vida interessante. É justamente por conta dela que podemos ser tocados pelo inesperado. É a improbabilidade que nos permite ficarmos abertos a mais conhecimento e mais profundo. É do conflito que nasce a música, a oração e a poesia; as brincadeiras, o debate e o jogo; a leitura, a dança e o amor. É do caos, em suma, que emerge a ordem consentida ao quotidiano limitado e perecível em que eu men escrevo e tu de me lês.

O desejo é sobretudo um movimento e não um lugar: muitos anos depois, a menina, já adulta, encontrou uma carta dentro da boneca. Na minúscula carta assinada por Kafka estava escrito: «Tudo o que amas perder-se-á, talvez. No fim, o amor regressará. Transformado».