Na quinta-feira, uma hora após Mariana Mortágua publicar no X um post sobre o novo primeiro-ministro da França, a dra. Alexandra Leitão, líder parlamentar do Partido Socialista, não quis ficar atrás da mentora intelectual e escreveu o seguinte na mesma “rede social”: “Perante uma clara maioria de esquerda na Assembleia, sufragada pelos franceses que recusaram de forma veemente a extrema-direita nas urnas, Macron decide nomear um primeiro-ministro de direita que irá negociar o seu programa com a extrema-direita. Estranho conceito de democracia.”

Não é à toa que acusam o X de permitir a “desinformação” e as “fake news”, uma bandalheira a que urge pôr fim. A “clara maioria de esquerda” a que a dra. Leitão se refere é assaz turva ou, na falta de melhor palavra, mentira. E não é daquelas mentiras ligeiras, ou um desleixo perdoável, ou um défice no domínio de aritmética complexa: a esquerda francesa tem 194 deputados, a maioria implica 289. São, se não erro, 95 deputados de diferença e de patranha.

Se removermos a tentativa de embuste, que permitia amanhar a tese, presume-se que a intenção da dra. Leitão era apenas a de imitar a dra. Mortágua e afirmar que o poder deve ser entregue ao partido (ou coligação, no caso) mais votado. Concordo sem reservas, incluindo quando o partido (ou coligação, no caso) mais votado é uma horda de chalupas discutivelmente comandada por um fervoroso anti-semita. O problema é que a dra. Leitão não pode, ou não deve, concordar: a analogia com a “geringonça” é tão evidente que custa perceber a distracção e o processo mental: que desgraçadas engrenagens se movimentaram na cabecinha dela e a convenceram de que havia ali um argumento a explorar? A pressa em copiar a dra. Mortágua não justifica tudo.

A dra. Leitão não se lembra de 2015? A dra. Leitão lembra-se de 2015 mas imagina que os eleitores não se lembram? A dra. Leitão sabe que os eleitores se lembram de 2015 mas confia na incongruência (ou em qualquer outra aptidão) natural do votante médio do PS? E sobretudo: o que leva a senhora a arriscar tamanha atoarda a propósito dos arranjos governamentais franceses, assunto que talvez entusiasme dezanove portugueses?

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Não sei responder a nenhuma das perguntas. Tenho quase a certeza de que a única razão do “post” é a necessidade de a dra. Leitão aparecer. A dra. Leitão gosta de aparecer. A dra. Leitão tem aparecido imenso desde que ocupa as funções actuais e, principalmente, desde que se confirmou o extraordinário carisma do “Pedro Nuno” na chefia do partido. Aliás, ambos os factos estão ligados a ponto de a dra. Leitão sonhar. Primeiro, sonhou – e confessou o sonho – de ser secretária-geral do PS. Logo de seguida, sonhou chegar a primeira-ministra, e voltou a confessar o sonho aos “media”. E houve quem, desconfio que a própria, sugerisse a dra. Leitão para a presidência da República. Se não há vaga de fundo, inventa-se uma vaga unipessoal, que o fundo já não nos espanta.

O PS que deu a Portugal, à Europa e ao mundo portentos do calibre do eng. Guterres, do “eng.” Sócrates, do dr. Costa e do carismático incumbente não está livre de, um belo dia, nos brindar com a dra. Leitão, cujo currículo fala por si. Porém, é preferível ser ela a falar. Numa entrevista à “Visão”, em 2012, ela falou e disse ser frontal e destemida, fã de Bruce Springsteen e adepta do Sporting, “mesmo lisboeta” e de esquerda, “super avessa” a maquilhagem e antiga aluna (e colaboradora) de Marcelo na Faculdade de Direito de Lisboa. As suas “referências políticas”, antes de adoptar a dra. Mortágua, eram Nelson Mandela, Mário Soares e Salgueiro Maia. Descontada a super aversão à maquilhagem, eis a retórica de uma tradicional candidata a Miss.

Sucede que o pensamento filosófico da dra. Leitão não se esgota aqui. Ao tempo da entrevista, a dra. Leitão era também secretária de Estado da Educação, a exacta secretária de Estado da Educação que defendia a “igualdade e democratização” no ensino e o fim dos contratos de associação com colégios privados, uma aberração indefensável – os contratos e, idealmente, os colégios privados. Com uma excepção. Ou duas: as filhas da dra. Leitão, que há uma dúzia de anos estudavam na Escola Alemã. E por bons motivos: “Tem a ver com a opção por um currículo internacional. Para mim era importante que elas tivessem uma educação com duas línguas que funcionem quase como maternas, digamos assim. Se assim não fosse, andariam obviamente numa escola pública.” Ou seja, para ela “era importante” que a descendência tivesse a “opção” da “internacionalização”, aparentemente exclusiva da instrução privada. Quanto à ralé, que não priva no Rato, não beneficiou da bênção do prof. Marcelo, não pode pagar luxos e nunca sairá de Fafe ou da Lourinhã, uma língua, e de trapos, chega e sobra. Se a democratização do ensino não é isto, desconheço o que possa ser.

Em suma, a dra. Leitão possui, em doses saudavelmente exageradas, a inconsciência, a incoerência, a boçalidade, a ausência de empatia, o cinismo, a prepotência, o descaramento e a ambição que a habilitam com fartura a mandar no PS, no governo, no que quiser. Eu, no lugar dela, corria de imediato para Belém. Consta que há lá bons colégios, e convém ir garantindo o futuro das netas. Só espero que o presente das filhas não passe por França.