Por alturas do 25 de Abril voltámos a ler e ouvir uns tantos, sejam políticos, comentadores mediáticos, ou mesmo jornalistas, dizer da necessidade da defesa das liberdades que Abril nos devolveu. Em particular, este ano, muito se disse da liberdade de expressão e da necessidade da sua defesa. O que em si pressupõe que a liberdade de expressão está ameaçada. Estará?
Semanas atrás, intercalada em debate num programa da RTP Fronteiras XXI sobre discursos extremistas e fragmentação da opinião, surgiu uma entrevista com o professor da universidade de Oxford, Timothy Garton Ash, conduzida pela jornalista Márcia Rodrigues, que se focava na liberdade de expressão. Nela o entrevistado afirmava que a liberdade de expressão está sempre ameaçada, posto que hoje a considere mais ameaçada do que há dez anos atrás. Mencionou que algumas dessas ameaças viriam do terrorismo político internacional, da desinformação russa, da pressão dos governos e das redes sociais. Como ainda do politicamente correcto ou do discurso unificado. Enfatizou que também a democracia precisa da liberdade de expressão, para se poderem tomar boas decisões nas nossas políticas. Esclareceu ainda que liberdade de expressão não é só dizer o que se pensa, mas sobretudo fazer debates civilizados.
Tive para mim que, com fazer debates civilizados, não se referia a civismo nos ditos, o que muito ajuda também, mas antes a civilização. Ou seja, o que está a acontecer no mundo, de que modo as mudanças em curso estão a influenciar as nossas vidas, que políticas deveremos tomar para apoiar as pessoas a melhor as compreenderem e se adaptarem às novidades, tanto no plano prático do nosso dia-a-dia, como no legislativo e no ético, ou tão só para nos prevenirmos dos riscos inerentes às mesmas.
Dias atrás foi a vez de o Comité Nobel atribuir o prémio da paz 2021 a dois jornalistas, a filipina Maria Ressa e o russo Dimitry Muratov, pela sua luta em defesa da liberdade de expressão. Ao fazê-lo quis sobretudo reafirmar ao mundo, com o peso sua voz, que a liberdade de expressão é imprescindível à democracia e à paz.
Posso bem perceber que, também por cá, a liberdade de expressão sente as suas ameaças, o que em minha opinião, que valerá apenas o que vale, virão não só do governo, mas também dos detentores dos órgãos de comunicação social. Creio que, neste particular, os directores dos nossos órgãos de informação se sentirão algo encurralados entre estas pressões vindas de fora e algumas das pressões que, em sentido oposto, por vezes lhe virão das respectivas redacções, mas lá as irão gerindo no melhor equilíbrio possível. Assumo todavia que não será fácil a vida profissional de um director de informação.
Outro fenómeno, que se me afigura ainda como ameaça, residirá nos, também mencionados, politicamente correcto e discurso unificado, ambos hoje aparentemente bem aceites e, infelizmente, até bastante comuns. Os tempos de pandemia disto têm sido um bom exemplo. Se alguém exprimia opinião algo diferente da do discurso oficial, logo os demais lhe caíam em cima. Curioso era por vezes verificar que, tal como um relógio parado estará certo duas vezes por dia, essa mesma opinião acabava, em algum momento posterior, por vir a coincidir com o discurso oficial, tais as mutações que este ia sofrendo. O caso das máscaras, que de desaconselhadas foram evoluindo até obrigatórias na praia, é disso sintomático.
Mas a estas ameaças à liberdade de expressão, acrescentaria uma outra que, pessoalmente, cuido tão importante como as demais. A qualidade do nosso jornalismo. E esta vem de dentro, da própria comunicação social. Onde estão os nossos grandes jornalistas, os nossos bons repórteres, os nossos avalisados entrevistadores? Certamente que alguns existem mas, na sua maioria, o panorama não é famoso. Bastará andar na rua para se perceber que este sentimento está cada vez mais presente em muita gente, sendo que muitos reagem deixando de comprar jornais (pelo menos os não desportivos), limitando-se a espreitar algumas notícias no tv, pois este já está pago, e mesmo assim quando não se discute o jogo que vai ser ou o jogo que já foi.
Eu, porém, não desisto dos nossos jornais, antes tentando colmatar as suas insuficiências com a leitura de alguns outros internacionais, em particular americanos, franceses ou ingleses, já que alemão não consigo ler, assim me tentando manter informado e, no mínimo, tentar perceber como e para onde caminha este nosso fantástico e complexo mundo.
Que me perdoem os jornalistas, profissão que muito estimo e admiro, mas é o que presentemente, do lado de cá, como consumidor de informação, sinto. E se aqui tão directamente assim o digo, por favor não o levem à guisa de mera crítica, que naturalmente também a é, mas antes o leiam como um incentivo a investirem na melhoria da qualidade do nosso jornalismo, pois bem precisamos dela. Precisamos nós, precisam os nossos políticos e precisa a nossa democracia.
É certo que hoje, contrariamente ao que sucedia com os da minha geração (ainda sou do tempo do telex), temos jornalistas formados profissionalmente nas respectivas escolas, o que nos permite ver programas de informação muito bem apresentados e ler ou ouvir reportagens muito bem organizadas. Já o conteúdo vai por vezes deixando algo a desejar.
Uma coisa é debitar as notícias do dia, missão primeira do jornalismo, e constatar que algo se está a passar, coisa diversa já será debater a raiz dos problemas e o sentido das mudanças que muitas notícias preconizam. Mas para perceber o que se está a passar, o que certas notícias poderão representar socialmente ou de que modo poderão informar as nossas vidas, ou as nossas políticas, aí sim, os debates, tal como os artigos de opinião, já terão, ou pelo menos deveriam ter, a sua mais-valia. E não bastará garantir-lhes um certo pluralismo, é necessário ir mais longe.
Talvez que a maior mudança que nos tempos hodiernos vivemos seja a da evolução (para não dizer mesmo revolução) tecnológica. O seu impacto social está a ser enorme e veloz. No modo de estar, de trabalhar, de comunicar, de educar, de deslocar, de conviver, de cuidar da saúde, de entreter, e até de noticiar.
Todos nós sentimos o impacto destas mudanças no nosso dia-a-dia. Mas tanto adolescentes como jovens já crescem e vivem num mundo muito diferente do que ainda lhes é apresentado. Por isso que o discurso político dos partidos tradicionais, que se têm mostrado incapazes de lidar com essas e várias outras mudanças, ou mesmo de as reconhecer, já nada lhes diz e eles lá se vão refugiando, uns na abstenção, outros, para aqueles castigarem, em pequenos partidos de protesto, assim conferindo a estes uma visibilidade superior ao seu real peso social.
Mas, tanto adolescentes como jovens, têm necessidade de referências, o que só lhes poderá advir de políticas alternativas que, dando sentido a tais mudanças, lhes dêem também sentido à vida e lhes transmitam mais confiança no futuro. O que por cá, infelizmente, não vejo acontecer (excepção talvez para o jovem partido Iniciativa Liberal, que assim estará a atrair muita juventude e muitos abstencionistas). É que, as mudanças que estamos a viver, em particular as tecnológicas, vêm sobretudo das empresas, suas movimentações e inovações. São pois coisas de empreendedores, de engenharias e de cientistas. Caberia agora à política dar-lhes sentido, não só no plano prático e legislativo, como ainda no da ética, fazendo com que as mudanças se traduzam num saudável incremento social, em benefício do indivíduo, e não em convulsões sociais.
Como disse o professor de Oxford que supra citei, também a democracia precisa da liberdade de expressão, para se poderem tomar boas decisões nas nossas políticas. Creio que igualmente aqui o jornalismo deverá ter um papel crucial, qual seja o de, para além de informar, contribuir para formar. Tanto o público em geral, como os políticos em particular, esclarecendo e debatendo as grandes mudanças sociais em curso e assim pressionando ainda a necessária acção.
Para tanto, será fundamental incentivar a qualidade e a independência do nosso jornalismo, de jornalistas que, de mente aberta ao mundo, saibam olhar para ele com olhos de futuro e nos ajudem a compreendê-lo, pois muito do que por esse mundo fora se passa, mais tarde ou mais cedo influenciará o nosso cantinho, sendo preferível estar prevenido do que ser surpreendido. Mas ficaremos ainda mais confusos se nos continuarem a explicar o futuro com olhos do passado.
Tenho assim para mim que apostar na qualidade do nosso jornalismo é a melhor defesa que se poderá fazer da liberdade de expressão e a que lhe trará maior sustentabilidade, além de poder facilitar a migração de muitos jovens das redes sociais para o verdadeiro jornalismo, pois que uma sociedade sem bom jornalismo será sempre coxa, o que dificultará o seu progresso.
Como em tempos me disse um instrutor de condução, a caixa de velocidades serve para ser usada, por isso use-a, também aqui me atreveria a dizer ao nosso jornalismo que a liberdade de expressão serve para ser usada, por isso usem-na, pois que o seu bom uso é o que melhor a resguardará de qualquer ameaça.