Em Setembro de 2018, o Adolfo Mesquita Nunes convidou-me para participar numa tertúlia com ele e com o Francisco Mendes da Silva, em Coimbra, no âmbito de uma acção de formação política organizada por aquela concelhia local do CDS. A tertúlia foi designada por “liberdade para ser de direita”. Coube-me falar sobre a democracia cristã. O Adolfo ficou incumbido do liberalismo e o Francisco do conservadorismo. Isto é o CDS: três correntes que se complementam, que não são antagónicas nem uma é excludente das outras. As linhas que se seguem são uma síntese actualizada do que na altura expus e debati.
A democracia cristã como movimento político tem a sua origem em finais do Século XIX na sequência da revolução industrial, com a conflitualidade social emergente, que determina também o surgimento do socialismo e do proletariado a contestar o liberalismo burguês, pondo-se em causa a hegemonia da Igreja como veículo de intervenção privilegiado junto da sociedade civil. Foi uma reacção a esse movimento operário e ao socialismo que começava a dar sinais de organização e implementação, sendo um momento determinante para a teorização da democracia cristã a publicação da Encíclica do Papa Leão XIII Rerum Novarum: uma orientação da sociedade num momento conturbado da história, rejeitando os excessos do capitalismo e as ideias socialistas. A partidarização da democracia cristã ocorre com a consagração do sufrágio universal e o ingresso das massas populares na vida política, quando os partidos passaram a actuar não apenas como mecanismo de representação parlamentar, mas também como veículo de formação ideológica e de organização da sociedade. Apesar de se inspirar na doutrina social da Igreja, a democracia cristã foi um movimento político autónomo, como de resto outros movimentos que se inspiraram na mesma doutrina.
Em Portugal, em meados do século XIX, o surgimento da democracia cristã está ligado à promoção, pela Igreja, da construção de um corporativismo católico, sobretudo, com objectivos assistencialistas e mutualistas, visando o amparo dos operários, a difusão da instrução religiosa, o combate ao pensamento anti-clerical e a reacção ao socialismo, cujo fim doutrinário seria a destruição da sociedade, da propriedade e da família. Estes movimentos democratas-cristãos portugueses nunca foram além da realização de esporádicas conferências apologéticas e tiveram maior penetração a norte em virtude da arreigada religiosidade das populações. A certa altura, começam a ser encarados com desconfiança por se temer que instigassem a conspiração e a desobediência à autoridade civil, desconfiança esta que era também instigada pelos movimentos socialistas concorrentes. O Círculo do Porto, fundado em finais do Século XIX, logo foi apelidado de “dique ao socialismo desordeiro” e “centro de propaganda cristã” porque, mais do que a ajudar à classe operária tinha em vista contrariar a influência do socialismo e recristianizar o proletariado, em oposição às ideias subversivas socialistas. Por tais razões, associações começaram a alargar a sua intervenção a objectivos reformistas ou inter-classistas como a promoção da justiça social, a higiene e condições de trabalho, a ordem económica, a subtracção dos operários à imerecida situação de miséria a que estavam condenados, defendendo a recusa de qualquer violência, a união e o entendimento de operários e patrões. Em vez da luta de classes defendia-se a complementaridade social entre o capital e o trabalho. A composição social inicial da democracia cristã era pequeno-burguesa, chefiada pela aristocracia clerical e com feições marcadamente anticapitalistas. A estratégia assentava no incentivo à pequena empresa, à livre concorrência, ao intervencionismo supletivo do poder público, à cooperativização do consumo e da produção, o fomento às medidas de moralização social. Com o passar do tempo, estas organizações vieram a ser consideradas inúteis e caíram em declínio, tendo o seu terreno político sido ocupado por nacionalistas, socialistas e anarco-sindicalistas. Porém há que reconhecer que tiveram um papel importantíssimo de humanização das políticas e na atenção aos mais desfavorecidos.
Actualmente, há um estigma político que leva ao afastamento dos cidadãos das posições democratas-cristãs, conotadas com o clericalismo, com a estagnação, com o ultraconservadorismo e com o populismo religioso a que aderem alguns, ferrete para o qual contribui o agnosticismo axiológico dominante. Por outro lado, andamos entretidos com a mania da felicidade e de ser imortais – o transumanismo e o pós-humanismo elevados à categoria de religião – negando quaisquer valores de orientação permanente, numa ideia de laicismo progressista, de modo que até se reprime de forma intimidatória quem defende princípios humanistas. Ninguém põe em causa a inestimável acção social da Igreja no combate à pobreza, à desigualdade e à protecção dos mais desfavorecidos, a solidariedade com os povos menos desenvolvidos e a atenção aos imigrantes. Porém, democracia cristã não se confunde com confessionalismo nem se resume à caridade.
Estado e Igreja coexistem separadamente, embora partilhem valores comuns, distinguindo-se o aparelho de governo e a autoridade religiosa e pugnando-se pela “sã e legítima laicidade do Estado”. Isto nada tem a ver, portanto, com confissão religiosa: há muitos democratas-cristãos ateus e a democracia cristã defende o pluralismo religioso, deve ter um discurso para todos, independentemente do seu credo. É uma visão não confessional ancorada em valores que são universais, justos e humanos. Não é, portanto, uma perspectiva bafienta da política, obcecada com as glórias do passado ou arreigada a estereótipos ultrapassados, que já nenhum sentido faz nos nossos dias. Um democratas-cristão defende “costumes”, não os impõe. O discurso de arrogância e de superioridade moral é uma conspecção de esquerda que a direita não pode partilhar, sob pena de subverter a sua própria essência.
E como conjugou o CDS a democracia cristã, o conservadorismo e o liberalismo?
É verdade que a democracia cristã assentou, no início, num movimento reformista, mas é hoje tendencialmente conservadora no sentido de que não defende a revolução ou a desconstrução da sociedade, antes a conciliação, o entendimento e, sobretudo, a moderação. Privilegia tradição, a obediência à autoridade (sem autoritarismo), as relações de família e de vizinhança, o papel das comunidades intermédias ou simbióticas, a racionalidade dogmática e a desconfiança na capacidade de o Estado construir uma sociedade perfeita. Reconhece diferenças sociais e o direito a elas, procurando atenuá-las, não na defesa do igualitarismo, mas antes com políticas de desenvolvimento e de progresso através do mérito e do esforço e rejeita todas as formas de totalitarismo e todas as situações que atentem contra a dignidade humana.
Acresce que ser liberal não é incompatível com ser democrata-cristão. A pessoa e as liberdades individuas são a âncora das políticas humanistas, destinando-se ao Estado um papel subsidiário, intervindo apenas para corrigir desequilíbrios ou excessos gerados pela liberdade individual e pela iniciativa privada. E é indiscutível que foi graças à liberdade económica que assistimos ao desenvolvimento económico dos países ocidentais e, por essa via, generalizou-se o acesso aos cuidados de saúde, à educação e à protecção social. A economia de mercado e a competitividade contribuem para o bem comum na medida em que permitem a criação de riqueza e a distribuição de rendimentos, tendo em conta que o Estado é geralmente mau gestor e ineficiente. A democracia cristã recusa a economia como subordinante do ético e do político, defendendo que o liberalismo económico é um meio e não um fim. Mas também, para além da dimensão económica, preconiza a ideia de que cada ser humano é único e irrepetível e deve ter a liberdade de se auto-determinar e de buscar o seu projecto de felicidade, não cabendo ao Estado interferir nas escolhas de cada um e na sua realização pessoal. Em suma, admite-se a intervenção do Estado na vida dos cidadãos e das empresas para corrigir assimetrias e excessos e só nessas circunstâncias, não lhe sendo permitido imiscuir-se na vida das pessoas.
Resumiria, assim, os princípios da democracia cristã contemporânea, simultaneamente conservadora e liberal, no seguinte quadro de valores ou ideias, sem qualquer ordenação entre eles:
- a atenção aos Direitos Humanos, numa perspectiva humanista e personalista, onde todos merecem idênticas oportunidades;
- a importância do trabalho como importante dimensão do indivíduo, obrigação para com o próprio e para com os outros, ao qual todos deverão ter acesso, premiando-se o mérito e o esforço;
- a defesa da propriedade privada, da competitividade do mercado e da livre iniciativa económica, embora se reconhecendo a função social da propriedade;
- o direito inalienável à Vida, desde a sua concepção até à morte natural;
- a solidariedade social, onde ao Estado caberá, como interveniente subsidiário, regular áreas onde a iniciativa privada não chega como a Justiça, a defesa, a segurança, como exercício do poder soberano, onde o Estado deve ser forte; ou a saúde, a educação e a segurança social, como direitos sociais, onde o Estado poder ser fornecedor mas tem de ser sobretudo regulador e protector;
- a solidariedade intergeracional e o papel das comunidades intermédias ou simbióticas;
- a economia social de mercado, que gera valor para assegurar a acção social;
- a família como célula fundamental e estruturante da sociedade, anterior ao Estado;
- os princípios gerais do Estado de Direito, como o primado da lei, a garantia dos direitos fundamentais, a separação de poderes, o respeito pela autoridade, o governo fundado no consentimento obtido por sufrágio universal, o pluralismo partidário, a rejeição de todas as formas de totalitarismo e todas as situações que atentem contra a dignidade humana;
- a ética como subordinante da política, da economia e dos negócios, tendo em vista a prossecução do bem comum e o espírito de serviço, o que implica a repressão e o combate a todas as formas de corrupção e a censura de práticas de funcionalismo militante, nepotismo ou dependência dos cargos do Estado;
- a preocupação com a sustentabilidade do território e com a conservação do ambiente, porque conservar o planeta e deixá-lo às gerações futuras é uma ideia profundamente humanista;
- um sentimento de pertença à Europa comum, como um espaço de liberdade, prosperidade e Paz;
- e o valor máximo da liberdade individual, no sentido de que a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros e responsabiliza o indivíduo pelos seus actos.
O CDS é um partido de direita moderada que dá guarida, de modo harmonioso, a todos estes valores e é na ligação da democracia cristã ao conservadorismo e ao liberalismo que reside a riqueza do nosso partido. Desenganem-se aqueles que acham que um destes pilares anula ou supera os outros. O CDS é uma federação de sensibilidades, não podendo ser sectário ao ponto de muitos democratas cristãos se reverem noutras propostas. Os futuros dirigentes deverão ter muito claro que um partido é um percurso e o futuro do CDS será tanto mais promissor quanto maior for a sua capacidade de agregar os vários pulsares em torno de um projecto político comum. 4,25% tem de ser a base do múltiplo e não o dividendo que só poderá resultar num quociente ainda mais baixo.