A nossa compreensão da sexualidade, um tema paradigmático da cultura moderna e sua verdadeira obsessão, tem sido perturbada pelo excesso de politização que atualmente a envolve”. A frase é de Camille Paglia e é assim que esta abre o seu extraordinário Mulheres Livres, Homens Livres, uma obra desassombrada e lúcida sobre os tempos que vivemos e sobre as novas doutrinas em torno do sexo, género e feminismo [Para quem não conhece, Camille Paglia é uma académica americana, assumidamente lésbica e feminista, mas muito crítica desta vaga de feminismo “estalinista” a que chama de terceira geração].

As linhas que aqui escrevo são sobre o feminismo militante woke, que se iniciou há muitos anos e teve, mais recentemente, um particular destaque com o movimento #meToo nos Estados Unidos, que rapidamente se estendeu a todo o mundo ocidental. Por cá, tivemos também por estes dias um ensaio de wokismo, que não chegou a atingir, até agora, proporções gigantescas por o seu protagonista ser, na verdade, um desses activistas das ciências sociais, oficiantes de culto de uma religião morta como é o marxismo.

A título prévio, cumpre esclarecer que considero, obviamente, abjecto o abuso de poder para a obtenção de favores de natureza sexual, bem como a humilhação que geralmente acarreta, sobretudo para as mulheres (mas não exclusivamente). Espero, sinceramente, que Boaventura Sousa Santos possa defender-se das acusações de que é alvo e, na sequência de um processo judicial, seja julgado culpado e condenado, consoante os factos que sejam apurados. E, já agora, que as acusadoras consigam fazer prova dos factos que lhe imputam. Este texto, não é, portanto, sobre este episódio em particular, mas sobre o fenómeno instilado por progressistas das ciências sociais, precisamente da área onde se insere o protagonista do caso português.

Vivemos, actualmente, uma vaga de feminismo militante pós-moderno e sofisticado, que podemos designar por feminismo de terceira geração em que os seus propagandistas (de resto também homens) reivindicam, paradoxalmente, um estatuto especial para as mulheres: por um lado, o da mulher “empoderada” e, por outro, simultaneamente, o de eterna vítima.

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Explicando. Na primeira vaga de feminismo, surgida a partir do século XVIII, as mulheres lutavam essencialmente pelo sufrágio feminino e direitos legais iguais, como o direito ao divórcio, à guarda das crianças, à igualdade na herança. Os seus objectivos eram não só legítimos, como determinantes para a consolidação do Estado de Direito e da democracia liberal que veio a ocorrer, genericamente, na Europa ocidental anos mais tarde. Por seu turno, na geração de feministas dos anos 60 havia um propósito diferente, que era o de lutar pelos direitos das mulheres, sobretudo pela liberdade sexual, pela igualdade de oportunidades de carreira iguais aos homens, pela licença de maternidade, objectivos igualmente justos e absolutamente indispensáveis numa sociedade livre e igual.

Entretanto, o movimento feminista, numa terceira ou quarta vagas surgidas a partir dos anos 80, passou a concentrar-se nas causas de nicho, na misandria ou a ideia de que o problema da mulher é o homem, na luta contra o patriarcado e contra uma sociedade que julgam manipulada a favor dos homens, com o objectivo de suprimir as capacidades das mulheres. Acresce a isto a pretensão nestes movimentos de anular o papel do homem e torná-lo ressentido, fraco e culpado (de quê?), aderindo a esquerda mais radical, geralmente, a esta tendência, o que representa uma involução puritana surpreendente: não há qualquer semelhança das moralistas feministas de hoje com as soissante-huitard emancipadoras da segunda vaga do feminismo. Nesta nova vaga, as mulheres infantilizam-se e vitimizam-se, reivindicam protecção, um “safe space” onde possam estar preservadas dos homens, tendendo a acentuar um conceito (imaginário) de violência machista que a esquerda, de resto, procura instrumentalizar. É um activismo que parte da concepção, falaciosa, de que as mulheres são um corpo homogéneo e, no essencial, todas vítimas de opressão.

Destas correntes feministas recentes, que podemos chamar de terceira geração, surge também a luta pela imposição de quotas para mulheres, disputa profundamente errada e perigosa, que se baseia no pressuposto, nunca assumido, de que as mulheres não terão mérito para ascender às posições de topo, tendo de ser alavancadas para lá chegar através da imposição das quotas (quotas à custa de quem?).

A situação é paradoxal: pretende-se igualdade e, simultaneamente, reivindica-se um estatuto especial (“somos melhores”), o seu “empoderamento” artificial à custa das quotas, assim como um espaço “seguro” a coberto de eventuais investidas de natureza sexual por parte dos homens no local de trabalho ou na vida social (já se chegou a falar em tempos de os autocarros passarem a ter um espaço à parte para as mulheres poderem viajar em segurança).

Este feminismo colectivista é incompatível com a igualdade e a liberdade de que legitimamente as mulheres devem gozar. Trata-se de uma visão identitária sectarista e construtivista que impõe uma ordem moral de cima para baixo, como uma espécie de catequese do novo pensamento único homogéneo feminista, que é um tremendo ataque à liberdade individual. O feminismo contemporâneo é, pois, uma perversão muito prejudicial às próprias mulheres.

Por outro lado, a vitimização (ou melhor vitimismo) das mulheres assenta sobretudo na culpabilização do homem, eterno devasso e predador, de que as mulheres são vítimas, impondo-se então a sua protecção no contexto profissional e social, para não se tornarem alvo de assédio, perseguição ou abuso. E vai-se metendo na cabeça das jovens a ideia de que são mártires permanentes do patriarcado e que isso é consequência lógica de uma herança cultural. O que é preocupante neste quadro é que as mulheres regridem à sua velha condição de flores de estufa (condição auto-inflingida) carecendo por isso, de protecção. Na verdade, o pior que podemos fazer às nossas filhas é incutir-lhes a ideia de que nascem vítimas porque o vitimismo é o primeiro passo para a violência e para o domínio e subjugação a um suposto salvador ou protector, tenha este a configuração que tiver.

Abusos e assédio moral sempre houve, seja no contexto profissional, seja no contexto social: de homens para homens, de mulheres para mulheres, de mulheres para homens. Não há apenas abuso de homens para mulheres, nem todos os abusos são iguais. A violação é crime; também é crime a importunação sexual com actos de carácter exibicionista, com formulação de propostas de teor sexual ou constrangimento a contactos de natureza sexual. Todavia, a tentativa de sedução, ainda que persistente e indesejada, não tem natureza criminal. Não se pode tratar ao mesmo nível dos crimes sexuais os ensaios de sedução a uma colega de trabalho ou de conversas sobre temas mais íntimos ou até a tentativa de algum contacto físico. Mulher que é digna do seu sexo sabe reagir adequadamente a esse tipo de investidas e a liberdade de dizer não a uma proposta sexual deve estar no mesmo patamar da liberdade de a fazer.

De resto, a ideia de que existe uma epidemia de predadores sexuais é viciosa e arriscada. Por esse mundo fora, muitas comissões para a igualdade de género e para a inclusão justificam o seu trabalho dedicando-se a fabricar sensacionais agressões a supostas vítimas. No actual estado de coisas, a única opção que restaria a um homem num contexto de relacionamento íntimo iminente, seria a de pedir consentimento escrito, ao invés de arriscar mais tarde, quando consumado o acto, ser acusado de abusador. E isto converte a complexidade, a espontaneidade e a irracionalidade próprias da actividade sexual num frio modelo contratual, o que, necessariamente, conduz a uma politização do desejo sexual, frase com que comecei este texto. Esta deriva vitimista afecta evidentemente a sexualidade das mulheres, pois o “puritanismo do bem”, conduz as mulheres, a coberto de uma falsa sensação formal de protecção, à situação de presas indefesas de demónios machistas e heterossexuais.

A ideologia subjacente a este feminismo militante de terceira geração combina elementos marxistas e pós-modernos com o objectivo de desconstrução social. Insistindo constantemente na retórica de que as mulheres são oprimidas nas relações com os homens, não só no casamento e na maternidade, mas também nos relacionamentos informais e ocasionais, onde o homem aparece como o abusador e a mulher como a vítima subjugada, estas correntes conduzem à narrativa de que as relações heterossexuais representam sistematicamente o domínio do homem e a submissão da mulher.

Agustina Bessa-Luís, sempre penetrante nos seus textos, escreveu, em 1983, no seu Os Meninos de OuroOs direitos da mulher, tão debatidos até por intelectuais sérios, não passavam de uma fraca bandeira de facto recortada nos costumes mais vigorosos de outras épocas. A inteligência libertina do século XVIII, que jogava com a condição do interdito, antes de Freud a considerar como indispensável ao prazer sexual da mulher, tinha cem anos de avanço a toda aquela propaganda de amor-livre e rebelião pequeno-burguesa. O resultado foi que o homem fez dessa pretensa libertação uma outra forma de rebaixamento da mulher, necessário à assimetria masculino-feminino como condição de uma intensidade sexual”. Esta frase, actualíssima, resume bem os tempos que vamos vivendo.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.