Conta-se que Bernard Shaw, para a estreia de uma sua peça teatral, convidou Winston Churchill. Enviou ao primeiro-ministro inglês dois convites: um para ele e o outro para um amigo… se o tivesse!
Apesar de Pedro Almodóvar, que realizou o filme ‘Tudo sobre a minha mãe’, não me ter convidado para a representação da homónima peça, de Samuel Adamson, em exibição no Teatro São Luís, em Lisboa, é público o ocorrido numa recente representação.
O episódio pode ser resumido em poucas palavras: uma activista transsexual invadiu o palco, quando intervinha uma personagem da peça, Lola, também trans, interpretada por André Patrício, o qual não se identifica, na vida real, com essa condição. A intrusa acusou o referido actor de ser transfake, denominação que se atribui a quem interpreta uma personagem transsexual, sem o ser, à imagem e semelhança do blackface que é o “nome que é dado à representação por actores brancos de personagens negras” (Público, 23-1-23).
Parece ter escapado à activista que se tratava de uma representação teatral e, portanto, não era exigível a identificação da personagem representada com a vida real do actor respectivo. Aliás, é muito frequente, tanto no teatro como no cinema, que pessoas de uma determinada condição sejam interpretados por actores sem essa característica: um não cego que interpreta um invisual, ou um actor saudável que representa um autista.
Embora não haja oposição a que um actor, ou actriz, de cor, represente uma personagem histórica que o não seja na vida real, o contrário já não é verdade, porque o blakface pressupõe que se está a usurpar esse papel, que deveria ser desempenhado por quem tenha a condição étnica da personagem representada.
Compreende-se que um Nelson Mandela loirinho e de olhos azuis talvez não seja a melhor opção e, portanto, parece razoável exigir uma certa afinidade entre a personagem e quem a interpreta. O que não parece admissível é que esse critério não seja aplicado universalmente: se é incongruente, por hipótese, um Gungunhana interpretado por um finlandês albino, não é menos incoerente um D. Afonso Henriques negro retinto!
A exclusão de alguém, por razão da sua raça, é, obviamente, racista e, como tal, inconstitucional. É tanto mais injusta quanto a sua contrária – uma pessoa de etnia não branca representar uma personagem branca – é aceitável e até louvável, em ordem à afirmação, certamente verdadeira, da comum dignidade e igualdade humana! Felizmente, passou-se da injusta discriminação de alguns à igualdade entre todos, mas agora, desgraçadamente, a mentalidade woke quer impor, de forma totalitária, um novo racismo, pela supremacia das raças antigamente exploradas!
E, quem diz raças, diz também ‘géneros’. Com efeito, que direito tinha a dita trans que, pelos vistos, exerce como prostituta, para interromper um espectáculo público?! Quem é ela para decidir quem deve fazer parte do elenco da peça?! Quem a legitimou para apear o actor André Patrício?! Quem defende e indemniza todos os que, tendo comprado o respectivo bilhete, viram frustrado o seu direito a assistir ao espectáculo?!
Não obstante a gravidade deste ataque contra a liberdade artística, o pior ainda estava por vir. Com efeito, o Teatro Municipal São Luís não aplicou a lei, que estabelece que, “durante a representação, exibição ou execução de espectáculos, os espectadores devem manter-se nos seus lugares, para não perturbarem os artistas e o público”, e ainda que, “sempre que um espectador perturbar a realização do espectáculo, deve ser obrigado a sair do recinto, sem direito a reembolso” (nº 1 e 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 23/2014, de 14 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei nº 90/2019, de 5 de Julho). Foi ainda mais longe, pois teve a indignidade de substituir o actor André Patrício por uma actriz transsexual! Só faltou que pagasse à indignada espectadora, uma indemnização de meio milhão de euros!
Pergunta-se então: se uma pessoa transsexual pode, impunemente, interromper uma peça de teatro, um cristão também pode fazer o mesmo, sempre que seja ofendida a sua fé? Se a direcção do teatro foi sensível à motivação da espectadora trans, também o será em relação à maioritária religião dos portugueses?! Ou, pelo contrário, sendo iguais todos os cidadãos, em questões artísticas alguns são mais iguais do que os outros?!
Não sou, nem nunca fui, partidário da censura, porque prefiro a liberdade de pensamento e de expressão, também artística. Se a todos os cidadãos deve ser reconhecido o direito à livre expressão, todos têm também o dever de respeitar o próximo, bem como a sua opção de vida e as suas crenças religiosas. Mas nenhum membro de uma minoria tem o direito de impor os seus gostos, contra a liberdade dos outros. Ceder a essa ofensa gratuita é, de facto, prostituir a liberdade artística e ser cúmplice da chantagem das minorias.
A este propósito, escreveu acertadamente Ana Bárbara Pedrosa, na sua página do Facebook, no passado dia 20: “Dia após dia, a loucura ganha espaço. Os actores devem deixar de ser actores, servindo apenas para serem eles mesmos. É o fim da representação, a vitória da representatividade. Sob este ponto de vista, a arte é um instrumento a ser usado para um fim pré-determinado. Deixa de existir com potencial transformador, deixa de existir como pergunta, existe como panfleto e nada mais”. E ainda, Afonso Reis Cabral: “O teatro, a literatura e o cinema são, para quem invade palcos por causa do ‘transfake’, um meio para atingir um fim. A peça pode ser uma bodega, o filme deplorável, o livro uma mediocridade – tanto faz, desde que alerte consciências e lute contra a injustiça. Desde que os represente como acham que devem ser representados” (JN, 25-1-23). Não se trata apenas da politização da arte, mas da sua destruição.
A opção sexual de um artista não justifica que seja discriminado, mas também não é razão para que seja favorecido. No entanto, um actor foi preterido por não ser transsexual, sendo substituído por outro que o é, e esta troca, em termos éticos, é inadmissível e, juridicamente, inconstitucional. Só haverá igualdade quando as pessoas não forem preferidas, nem preteridas, em função da sua raça, cor, religião ou opção de vida. André Patrício foi afastado por um motivo racista, quando o único argumento válido para contratar, ou impugnar, um actor, é a sua arte. Para além do racismo étnico, há que combater o racismo de género, que hierarquiza os cidadãos em função das suas opções sexuais.
Os activistas woke, ao se oporem ao blackface e ao transfake, também têm que ser forçosamente contrários, por uma questão da mais elementar coerência, ao sacerdócio feminino. O padre faz as vezes de Cristo, ou seja, representa-o e, portanto, segundo esta ideologia, seria incongruente que esse papel fosse entregue a alguém com uma identidade sexual que não seja a de Jesus. Mesmo não sendo o actor igual à personagem representada, deve a ela parecer-se tanto quanto possível: nenhum coreógrafo pede a uma mulher que faça de Romeu, nem a um homem que represente Julieta! Portanto, ao blackface e ao transfake, há que acrescentar o priestface!
Winston Churchill não era homem para não reagir a uma provocação. Com o seu típico humor, agradeceu a Bernard Shaw o duplo convite, mas disse que, como não poderia ir à estreia, iria a uma segunda representação… se houvesse!