Em artigos anteriores, falei sobre diversos aspectos do sistema eleitoral português. Um aspecto que foi bastante desenvolvido foi o problema dos “votos desperdiçados”, causado pela enorme desigualdade de direitos electivos entre cidadãos recenseados em círculos eleitorais diferentes, consoante do número de lugares desse círculo. Porém, ao falar primeiro desse problema corri o risco de dar a impressão de que esse é o maior problema do sistema. Na minha opinião não é. Há um outro, tanto ou mais grave do que o primeiro: a ausência de alguma forma de voto em nome para a eleição dos deputados. Este artigo foca-se nas consequências que esta ausência tem para uma sociedade, a curto e longo prazo.

Neste artigo e em todos os artigos sobre este tema eu devia usar sempre o termo “voto nominal” e esquecer quaisquer termos alternativos. Porém, após passar vários anos a falar sobre sistemas eleitorais constatei que por vezes as pessoas não percebiam o que eu queria dizer. Mais do que uma vez, vi ser usada a expressão “listas uninominais” – o que é uma contradição de termos, pois se são uninominais só estaria em jogo um nome e nesse caso não faria sentido falar de listas. Passei a usar “voto em nome” como uma alternativa menos técnica e mais acessível de “voto nominal”.

O voto nominal é um conceito simples. É simplesmente votar num nome, ou escolher uma determinada pessoa – necessariamente especificada através do nome. Em sistemas baseados em alguma forma de voto nominal, cada eleitor sabe em quem votou e cada candidato sabe quantos eleitores votaram nele. Pode tomar formas muito distintas: listas abertas, círculos uninominais, o voto único transferível, o sistema alemão e variantes. As diversas variedades de voto serão analisadas em mais profundidade em próximos artigos.

Começam a ser poucos, os países europeus que não possuem alguma forma de voto nominal. O sistema eleitoral português é um desses poucos. É um dos sistemas europeus que concede menos opções ao votante. O voto é atribuído a listas partidárias, sendo os lugares no parlamento ocupados pelos candidatos dos partidos pela ordem de inclusão na lista e na medida dos mandatos obtidos. Em cada círculo, o conjunto dos votos válidos determina quantos deputados cabem a cada partido, mas não tem qualquer influência na determinação de quais os candidatos da lista que são efectivamente eleitos. Essa determinação constitui um monopólio dos partidos concorrentes. Na prática, os partidos impõem os deputados que bem entendem. Esta situação dura desde as primeiras eleições em 1975.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Consoante o número de lugares tradicionalmente conquistados em cada círculo, os maiores partidos têm uma garantia virtual (digamos, uma forte probabilidade) de eleger um mínimo de lugares nesse círculo. Os lugares na lista eleitoral do partido para esse círculo são conhecidos por lugares elegíveis. Na prática, ser colocado num desses lugares da lista dá a garantia de que se vai ser “eleito”, independentemente das preferências do eleitorado. Em cada eleição legislativa, há dezenas de candidatos que sabem que vão ser deputados, semanas antes de ser deitado o primeiro voto.

Na prática, os lugares elegíveis correspondem a uma coutada de lugares reservados para o partido. Qualquer um pode confirmar isto. Sugiro a seguinte experiência: na Internet, pesquisem a expressão “lugares elegíveis” (de preferência com as aspas) e leiam os títulos de jornais que vão aparecendo nas primeiras páginas. Em alguns títulos, até aparece a palavra “RESERVADO”!

Faz parte da essência da democracia que o resultado duma eleição não possa estar decidido antes da sua realização. É costume ouvir dizer que “em democracia não há vencedores antecipados”. Mas é precisamente o que acontece nas legislativas portuguesas. Esta propriedade não é prescrita explicitamente pelo sistema eleitoral mas verifica-se na prática, como uma consequência deste ser como é.

É importante recordar que um voto só é válido se for num partido. O parlamento é sempre preenchido com 230 deputados, não importa quantos cidadãos votem. É possível duas votações, uma participada com 99% do eleitorado e outra com 1%, resultarem em exactamente o mesmo elenco parlamentar.

Estas regras significam que os votantes não possuem verdadeiramente o poder de negar o voto a algum candidato, algo que seria bastante saudável. A razão pelas quais um votante poderá querer negar o voto são muitas e variadas, e.g., pode ter desiludido, ter tido algum comportamento inaceitável, ter sido apanhado a mentir, ou descobrir-se que é membro de uma sociedade secreta e iniciática. Em sistemas que incluem o voto nominal, os eleitores têm a opção de nas eleições seguintes não votar nele, fazendo com que ele saia da cena política. Com certas formas de voto nominal, podem fazer isso sem serem obrigados a desistir de votar no partido dele.

Em Portugal, a única maneira de se negar o voto a alguém, é votar noutra lista – que também pode ter os seus maus elementos e geralmente tem. Além disso, está-se também a negar o voto a eventuais bons elementos da lista rejeitada. Pelo facto deste sistema ser como é, há um núcleo duro dos maiores partidos que não pode ser desalojado do parlamento pela via dos votos. O resultado, é a blindagem contra o escrutínio democrático e contra a penalização eleitoral dos maus políticos.

Os políticos de um partido grande que perde as eleições gostam de dizer que foram “avaliados” ou “julgados”. Isto é enganador. Para haver um julgamento genuíno, tem de haver possibilidade de penalização. Os portugueses não têm a possibilidade de penalizar os candidatos colocados em lugares elegíveis. Mesmo quando um dos maiores partidos “perde” umas eleições, os barões desse partido nunca são desalojados de lugares públicos. Refugiam-se nos lugares elegíveis e vivem numa perpétua impunidade. Estes anos todos, nunca foram verdadeiramente sujeitos ao escrutínio democrático e nunca saem do circuito do poder. Já houve deputados que estiveram no parlamento mais tempo do que Salazar esteve no poder.

É pensando nestas questões que percebemos que é o próprio sistema eleitoral que bloqueia a renovação dentro dos partidos. A renovação consiste em uns serem substituídos por outros. É papel do eleitorado indicar quem vai e quem fica, através dos actos eleitorais. Em Portugal é frequente ouvir-se dizer que “o sistema não é reformável por dentro”. Certamente que não. Em muitos sistemas políticos, a renovação dos partidos é dirigida pelos votos em eleições, que transmitem os sinais sobre que políticos merecem progredir (porque têm votos) e que políticos devem sair de cena (porque ninguém vota neles). Mas para isso funcionar, os votos têm de ser numa pessoa concreta. A ausência de voto nominal abafa os sinais que os cidadãos têm para dar, impedindo-os de desempenhar o seu papel na renovação interna dos partidos.

É também importante ter presente que no sistema português, mesmo que inicialmente algum membro da lista não tenha sido eleito, os “eleitos” podem revezar-se ao longo da lista, podendo o lugar de deputado chegar ao último suplente da lista. Já aconteceu. Tudo isso é feito silenciosamente pois um sistema desprovido de voto nominal não prevê eleições intercalares.

O sistema eleitoral também ajuda a perceber porque razão se sente muita corrupção e falta de ética na política portuguesa. O eleitorado é impedido de servir de contrapeso a outras influências no parlamento. Nunca há vazios de poder: quanto mais fraca é a influência do eleitorado, mais forte é a influência de outras forças. Com este sistema, os grupos de interesse estão livres da interferência do eleitorado e podem despreocupadamente entender-se com os barões partidários. Na prática, os grupos de interesse têm mais influência no parlamento do que os cidadãos. É por estas razões que eu afirmo que uma das melhores medidas de combate à corrupção é a modernização do sistema eleitoral, com a instituição de alguma forma de voto nominal que ponha termo aos “cabeça de lista” e “lugares elegíveis”, sem prejudicar a proporcionalidade. Há várias soluções técnicas que permitem atingir estes objectivos e outros.