Antes mesmo de conhecer o resultado da votação de amanhã na Câmara de Deputados de Brasília sobre o «impeachment» da presidente Dilma Rousseff e o seu eventual envio para o Senado, cujo voto será em princípio final, há uma coisa que já sabemos. Aquilo que está em causa no Brasil é uma acesa luta pelo poder que não ficou decidida nas eleições presidenciais de há ano e meio e que não terminará com o «sim» ou «não» à destituição da actual presidente. A luta continuará aberta por bastante tempo até ser encontrada, quiçá, uma solução de conjunto para os problemas político-partidários e socioeconómicos que neste momento atravessam o Brasil de cima a baixo. A fórmula actual está esgotada!
O PT conquistou a presidência com a vitória de Lula, depois de sucessivas tentativas, em Novembro de 2002. Na altura, saudei essa a vitória eleitoral do maior partido de esquerda do mundo democrático esperando que Lula e o PT fossem capazes de racionalizar e modernizar a vida política do Brasil. Ora, o sistema político-partidário brasileiro provou ser mais forte e cedo o PT, cuja votação como partido nunca ultrapassou os 20% e a esquerda no seu conjunto uns 25%, teve de partilhar o poder através de uma fórmula a que foi dada o nome de «presidência de coalizão», a qual consistiu num esquema cada vez mais degradado de partilha do poder com todos os agrupamentos partidários e todos os grupos de interesses, da esquerda à direita, dos «Sem Terra» aos grandes proprietários agrícolas e dos sindicatos às indústrias exportadoras.
Concretamente, a reforma monetária e as contas certas deixadas pelos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), bem como os volumes crescentes das exportações primárias, incluindo a emigração, fizeram com que a dívida crónica do Brasil se reduzisse significativamente, criando a ilusão de um crescimento ininterrupto que acabou por ter o seu fim e degenerou numa crise económica devastadora, despreparando completamente o Brasil para um ajustamento de tipo europeu.
O mal-afamado «mensalão», que valeu ao PT o seu primeiro grande abalo, levantando as maiores dúvidas sobre a sua integridade moral e levando dirigentes históricos à cadeia, mais não foi do que um esquema de compra regular de votos partidários destinados a garantir maiorias avulsas para as decisões do caótico governo presidencial. O estatismo inerente às veleidades esquerdistas dos ideólogos e dos líderes sindicais do PT fez, assim, que fosse «revertida», como agora se diz, a privatização parcial da Petrobrás. Ao renacionalizar a 100% a «joia da coroa» do Estado brasileiro, o PT abriu o caminho à virtual institucionalização da corrupção sob a égide do governo.
Não se pode esquecer que a actual Presidente da República iniciou a sua carreira política como responsável máxima da Petrobrás e, posteriormente, como ministra da Energia, antes de se tornar na sucessora presidencial designada por Lula para perpetuar o seu poder. São todos estes preços que o PT é chamado agora a pagar directa ou indirectamente. O ar que se respira nos corredores do «presidencialismo de coalizão» não podia ter-se tornado mais bafiento. O estatismo e a corrupção são causa e efeito circulares do actual escândalo da Petrobrás, que se arrisca a levar tudo à sua frente, incluindo Dilma!
A análise empírica mais pertinente da crise que se arrasta desde a eleição de Dilma em 2014 é porventura a do cientista político Jairo Nicolau. Embora caótica e oportunista, foi a própria modernização da sociedade brasileira encetada por FHC que acabou por esgotar a fórmula caduca do «presidencialismo de coalizão», destruindo a representatividade eleitoral efectiva de mais de 25 partidos no Congresso.
Ao mesmo tempo, o populismo e o autoritarismo de Lula e do PT degeneraram na gestão ideológica das políticas públicas, desde o assistencialismo à educação e à habitação. Com a crise mundial, a queda das exportações para os países «emergentes e a quebra do preço do petróleo, os sucessivos arranjos governamentais de Dilma falharam redondamente os ajustamentos financeiros necessários, deixando ao governo que venha a sair da guerra do «impeachment», segundo Jairo Nicolau, «uma economia destruída».
Reconhecer e representar a nova sociedade brasileira; refazer a vida política e partidária; ajustar as finanças e reconstruir a economia; isso tudo, simultaneamente, será de mais para qualquer governo saído da actual crise agónica brasileira por muito tempo. Inversamente, também não será prolongando por mais tempo uma «coalizão» como aquela que o PT montou durante mais de treze anos e que perpetua já como uma espécie de «chavismo» em vez do partido moderno que o PT pretendia ser. E também não será, com certeza, o agitar da «luta de classes» e do «imperialismo americano» que levará o Brasil actual onde quer que seja. Lá como cá, a histeria ideológica de uma auto-proclamada esquerda nada acrescentará, antes pelo contrário, à compreensão dos problemas reais bem como à busca de soluções inovadoras e participadas. Mas por ora é só do poder que se trata.