Não sei se os padres católicos têm o mesmo hábito mas é comum ao Domingo os pastores protestantes virem despedir-se das pessoas no final da igreja. Esta despedida tanto proporciona momentos maravilhosos como momentos miseráveis. Afinal, não há religião bela que não possa ser estragada pelos religiosos. As conversas que acontecem depois do povo louvar o Criador podem levar-nos, na melhor das hipóteses, a querer continuar a adoração fora do santuário. Mas as conversas que acontecem depois do povo louvar o Criador também nos podem levar a lamentarmos que ele tenha criado algumas das pessoas que connosco o louvam.

Na Igreja da Lapa há uma pessoa que só muito raramente não vai ao meu encontro à porta no final do culto. Chama-se Madalena e tem oito anos. A Madalena chega geralmente com perguntas acerca do que ouviu no sermão. Não há nada como uma voz infantil para fazer um pregador descer à terra, sobretudo se ele sentir que subiu ao céu no eventual arrebatamento da sua própria pregação. As dúvidas que a Madalena me traz rapidamente me devolvem os pés ao chão e há até uma coreografia em que me inclino à altura dela para a ouvir—é quase uma âncora para mim.

Calculem o filão de perguntas que pode nascer da cabeça de uma criança exposta às histórias da Bíblia. Exemplifico com duas das difíceis: “Pastor, o que é uma meretriz?” e “Pastor, o que é um eunuco?” Responder-lhe apropriadamente é das tarefas pastorais mais exigentes que atravesso (e isto com algumas pessoas ao meu lado a rirem maliciosamente imaginando como vou descalçar a bota). Se adicionarmos todo o esquema de queda, arrependimento, sacrifício e redenção, no qual os protestantes são especialmente enfáticos, deparamo-nos com um infindável rastilho de promissoras perguntas para a infância que ainda tem pela frente.

Mas nem só de verbo se faz esta história: a Madalena também desenha. Aconteceu há umas semanas a Madalena mostrar-me um desenho que durante o sermão fez de uma cruz que subitamente foi interrompido por uma gota de sangue que lhe caiu do nariz (quando era miúdo também me acontecia sangrar do nariz inesperadamente). O resultado era uma página quase vazia com uma cruz no meio e a tal gota de sangue, ao lado, raiando como um pequeno sol na paisagem despida. Nesse dia senti que a Madalena caminhava para ser a verdadeira mística protestante: ao inspirar-se na morte do Senhor, derramou o mesmo que ele derramou por nós. Esta menina é um prodígio constante.

Os adultos quando saem da igreja não inspiram grande ambição espiritual. Podem ter gostado ou podem não ter gostado mas, sobretudo, e em comparação com as crianças, perdem a capacidade de sair com perguntas. Quando crescemos circulamos, como agora se diz no inglês original, com “confirmation bias”—a tendência de processar informação interpretando os factos de acordo com as convicções que já temos (explica o Google). Ao escrever isto não elogio nem a infância como idade de inocência (não é), nem elogio fazer perguntas como uma qualidade preferível a obter respostas (também não é). Simplesmente constato a previsibilidade das nossas certezas.

A pequena Madalena ao lado do pregador é o que Jesus tramou para os que dizem ser cristãos. Mestres e meninos devem andar juntos para que os primeiros não esqueçam que também são os segundos, e os segundos façam para ter algo dos primeiros. Por alguma razão o Jesus menino deixou a cabeça dos mestres à volta quando foi ao Templo em Jerusalém. Ir à igreja deve continuar esta tradição sagrada de impedir mestres que não se ameninam e meninos que não se amestram.

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