Na União Soviética, o artigo 64 da Lei Fundamental Provisória de 1922 dava direito de voto a todos os cidadãos. Eram amplas liberdades democráticas. Talvez demasiadamente amplas. Felizmente para o povo, o artigo 65 do mesmo diploma indicava os suspeitos e subversivos que teriam de ser privados desse direito universal para que os amanhãs cantassem. Eram eles:

  1. Os que empregavam trabalhadores para alcançarem um aumento de lucros;
  2. Os que obtinham rendimentos sem trabalho, como juros de capital e rendas de propriedade;
  3. Os comerciantes privados;
  4. Os monges e os clérigos;
  5. Os funcionários ou agentes da antiga Polícia de segurança Okhrana, (polícia secreta czarista) e os membros da antiga dinastia reinante;
  6. Os dementes ou deficientes mentais;
  7. Aqueles a quem o soviet local tivesse retirado os direitos de cidadania.

Ou seja, todo o empresário, por pequeno que fosse, não tinha direito de voto; o mesmo para qualquer rentista, proprietário ou comerciante. Os religiosos não faziam, evidentemente, parte dos cidadãos de bem. Nem, claro, os ex-funcionários da antiga polícia e da Segurança de Estado, a Okhrana. Também não tinham direito a voto a família do czar – a que não tinha sido massacrada – e a aristocracia que não morrera na guerra civil nem fugira para a Europa Ocidental para alimentar a literatura romântica de cordel com figuras como o príncipe “Chauffeur russo”.

Os regimes comunistas seguiram esta regra: extinguiram ou excluíram as pessoas ou classes que lhes podiam ser hostis e cortaram qualquer laivo de independência económica e social que pudesse alimentar a fogueira da oposição política.

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Estes regimes desapareceram entre 1989 e 1992, com a implosão da União Soviética e dos seus satélites na Europa Oriental e com as mudanças na China de Pequim, originadas por uma certa liberalização da Economia, seguida nos últimos anos por um regresso ao controlo político pelo partido único.

Assim, regimes comunistas declarados restam muito poucos além do de Cuba e da Coreia do Norte.

As raízes do chavismo

É por isso que a Venezuela e o que se passa na Venezuela é singular e surpreendente.

Hugo Chávez fundou em 1982 o Movimento Bolivariano. Chávez era um militar esquerdista que, com alguns dos seus companheiros – uma espécie de capitães de Abril latino-americanos –, criou o dito Movimento, sob a égide de uma revolucionaríssima trindade: Jesus Cristo, Karl Marx e Simón Bolívar. Karl Marx e Simón Bolívar eram óbvios; Jesus Cristo porque, como explicava Chávez a Don Mário Soares: “fue el primero socialista…” (Ao que o Dr. Mário Soares, não muito comovido com evocação da piedosa filiação das convicções que metera para a gaveta, retorquia no seu criativo dialecto de Cervantes: “Si, pelo haz-lo com libertad!”

Não sabemos se por respeito à recomendação do pai da lusa democracia, Chávez ainda terá tido alguns escrúpulos nesta matéria, mas o seu sucessor, Nicolás Maduro, parece não ter sequer vontade de simular virtudes democráticas, quer a manipular eleições, quer a reprimir os descontentes com o resultado dessa manipulação.

Foi o que fez na eleição presidencial do fim de Julho, em que o candidato da oposição unida, Edmundo González, claro vencedor segundo as actas recolhidas nas mesas de voto, apareceu como vencido nos resultados oficiais proclamados pelo poder e confirmados por um organismo jurídico-eleitoral de clara filiação chavista.

Desde aí, a oposição venezuelana no interior do país e no estrangeiro tem defendido junto dos governos e organismos internacionais a causa de González.

Edmundo exilou-se em Madrid, e daí tem orientado a luta pelo reconhecimento da vontade popular dos venezuelanos, tendo conseguido alguns progressos no Parlamento Europeu e junto dos governos dos Estados membros.

Nós por cá, tudo bem

Ontem no Parlamento português a Venezuela foi motivo de diversas moções partidárias – da Iniciativa Liberal, do PSD, do Chega, do BE e do PCP. A IL era a mais radical: queria o reconhecimento de Edmundo González como Presidente eleito. O Parlamento Europeu, em 19 de Setembro, tinha reconhecido González como “presidente legítimo e democraticamente eleito do país” por 309 votos a favor, 201 contra e 12 abstenções. E reconhecera também a existência fraude eleitoral.

Em Lisboa, em S. Bento, não se atreveram a ir tão longe: a moção da Iniciativa Liberal para considerar González o presidente eleito, apoiada pelo Chega, por dois deputados socialistas e por três sociais-democratas, acabou rejeitada.

É evidente que estas posições são mais simbólicas do que políticas por não terem exequibilidade. Mas servem para medir a temperatura ideológica de cada força (ou fraqueza) partidária. Assim, a Iniciativa Liberal e o Chega, por uma vez juntos, foram os mais determinados em reconhecer González. A moção do PSD (partido que votou contra o reconhecimento de González), para que não se reconhecesse Maduro como presidente, denunciando a violação dos direitos humanos e a perseguição política na Venezuela e mencionando a diáspora portuguesa que teria de ser acautelada, foi a mais votada. A unanimidade só foi quebrada pelo PCP, perante o perigo para a democracia representado por González, a tentativa de ingerência americana e as manobras da “extrema-direita” contra Maduro.

Os comunistas portugueses pediram depois “solidariedade e respeito pela soberania da Venezuela”: os cidadãos venezuelanos tinham votado; e porventura o presidente Nicolás Maduro entendera, a bem do bom povo (bom mas inconsciente das manobras fascistas), que as liberdades demasiadamente amplas podiam ser um “perigo para a democracia”, e tratara de as restringir a posteriori, seguindo a cadência artigo 64/ artigo 65 da Lei Fundamental Provisória de 1922 dos mestres e pioneiros do Socialismo.