Acordo às 7 horas, sobressaltada. Sonhei com os miúdos. Tinha-me esquecido deles no carro quando, na verdade, os devia ter deixado no infantário. Notícias a mais, penso. Tento afastar o resquício de aflição do pesadelo vivido com um esfregar de olhos. Olho para o lado e vejo que o Salvador ainda dorme. Atento aos barulhos da casa e deduzo que os miúdos ainda estejam deitados também.

Incapaz de me deixar levar pelos braços de Hipnos novamente, levanto-me. A caminho da casa de banho, olho-me de relance ao espelho e saltam-me à vista as olheiras, uma nova constante na minha vida e mais um dos aprazíveis extras da maternidade. Faço um xixi, talvez o mais sossegado do dia. O momento, digo. Deixo-me ficar, de olhos cerrados a apreciar um pouco mais aquela altura do dia em que o silêncio e a tranquilidade ainda imperam. Pelo menos hoje os miúdos dormiram a noite toda, penso. Preciso de papel higiénico, o Salvador acabou o último rolo e não o trocou por um novo. O meu terceiro filho para dores de cabeça adicionais.

Dirijo-me à cozinha e observo a pilha de louça lavada que repousa no escorredor. Uma escultura de utensílios de cozinha meticulosamente empilhados de modo a sustentarem-se, hirtos e durante toda a noite. Avalio por breves momentos a melhor forma de desmontar a torre e prossigo então à remoção das mesmas evitando qualquer barulho estridente capaz de acordar a casa.

Missão cumprida. É quinta de manhã. Os miúdos ficam o dia inteiro por casa, continua a ser-me impossível abrir mão deles e deixá-los no infantário. Não consigo afastar a sombra de constrangimento que pousa sobre mim ao imaginar deixá-los ao cuidado de educadoras quando a mãe deles passa o dia inteiro por casa “sem fazer nada”.

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O Salvador precisa de ir trabalhar e eu preciso de um café. Dose dupla, como sempre. Volto a verificar se todas as portas se encontram bem fechadas antes de colocar a estrondosa máquina de café a funcionar. Denuncio-me. A casa acorda, o caos instala-se.

Já é quase hora de almoço. Operação almoço, digo. O Francisco recusa-se a comer os brócolos, não o julgo. Também eu recusar-me-ia a comer todos os pratos insípidos que sirvo a estes dois cachopos. Consigo chantageá-los com um chocolate. Dois chocolates para eles e um chocolate para mim também, julgo que mereço depois de todo este circo.

Deixo-os plantados em frente ao televisor da sala, de chocolate na mão e na esperança de conseguir um momento de sossego que me permita arrumar a cozinha enquanto aguardo que a voz esganiçada dos desenhos animados ajude a que o sono lhes bata à porta.

Deitamo-nos os três na nossa cama. Na minha e na do Salvador, digo. Apesar de os ter obrigado a fazer cada um a sua cama, a nossa ainda se encontrava desfeita, com os lençóis ainda enrodilhados da noite de sono. É hora da sesta. Missão sesta, digo. A deles, não a minha, a muito custo. A história escolhida foi A Branca de Neve e Os Sete Anões, a preferida dos miúdos, que se demonstram mais resistentes ao sono do que a mãe: “Mais, mamã”, suplica a Oli quando o sono se apodera momentaneamente de mim.

Acordo com o toque distante do telemóvel. Olho para o lado e vejo que os miúdos adormeceram. Levanto-me num ímpeto na esperança de que os cachopos não o ouçam e não acordem também. Corro para a sala. “Estou?”.

Era do centro de saúde. A Oli tinha uma consulta às três e meia. Consulta esta que ontem de manhã confirmei e da qual hoje me esqueci. Contenho as lágrimas no caminho até à casa de banho onde desato num pranto enquanto faço um xixi. O segundo do dia. Porque nenhum momento pode ser desperdiçado.

Os miúdos acordam, o Salvador chega. Hoje podemos tomar o lanche todos juntos. Panquecas, escolha unânime. Acompanhadas com ovos mexidos para o Salvador, nutella para o Chico e doce de morango para a Oli. A mãe fica com os restos e com uma pilha de loiça enorme para lavar.

Organizo a cozinha enquanto o Salvador brinca com os miúdos. Preciso de um banho. Talvez dois. “Importas-te de olhar pelos miúdos enquanto tomo banho num instante?”.

A água quente bate-me nas costas e bate-me também o sono. Impossível, penso. Ainda há pouco estive a dormir. Cansaço? Não fiz nada para estar cansada.

Chego à sala e vejo que o Salvador adormeceu. Os miúdos muniram-se de lápis e marcadores e iniciaram o seu projeto artístico na parede da sala. “Olha mãe, vamos pintar a casa como nos desenhos animados”, afirma orgulhosamente o Francisco. Acordo o Salvador. Dirijo-lhe impiedosamente toda a fúria de ver a parede da sala cheia de gatafunhos sem nexo. “Só te pedi para olhares por eles 10 minutos e tu adormeces?!”.

As lágrimas escorrem. Segundo colapso do dia. Fecho-me no quarto. Dou por mim novamente num pranto enquanto pesquiso por mezinhas capazes de retirar a tinta da parede. A Oli aparece. Esqueci-me de trancar a porta. “A mãe tá tiste?”. Sim, a mãe está triste. A mãe está cansada. A mãe ama-te mas está muito cansada.