A cada 21 de Agosto, com a precisão de um relógio suíço e um insuperável zelo militante, o activista Mamadou Ba evoca o início da revolta de escravos de Saint-Domingue (futuro Haiti). Os termos em que o faz são muito idênticos, por vezes são mesmo um copy-paste de um ano para o outro, como convém a quem repete uma mensagem política, na convicção de que, de tanto a repetir, ela acabará por passar e vingar.

Que mensagem é essa? Tomemos a sua versão mais recente, a título de ilustração: “21 de Agosto de 1791, sob a direção de Toussaint Louverture, começa a Revolução Haitiana que conduziria à independência do Haiti, a 1 de Janeiro de 1804. Este acontecimento foi fundador da possibilidade da liberdade total contra toda a ignomínia esclavagista, colonial e racista. É provavelmente a maior dívida moral e ética que temos para com todas e todos que, ao preço do seu sangue, se ergueram contra a desumanidade e a barbárie da Escravatura e do Colonialismo. Infelizmente, uma das maiores revoluções políticas da História que teve como centralidade o direito total e inalienável à Humanidade, continua relegada em segundo plano no ensino e na divulgação histórica.”

Esta mensagem costuma ter, no facebook, o aplauso expresso de 100 a 300 pessoas, algumas das quais a divulgam, certamente convencidas de que ela corresponde à verdade. Não corresponde. Está cheia de erros ou de mal-entendidos, tantos e tão insistentemente repetidos que aconselham mais esclarecimentos para além dos que já foram feitos.

A primeira coisa que deve clarificar-se é que os escravos não se revoltaram em bloco. Apesar de estarmos perante uma rebelião de grande dimensão — talvez 80 mil rebeldes — convém não perder de vista que a colónia tinha, nessa altura, 500 mil escravos negros. Ou seja, a grande maioria deles (84%) terá permanecido nos locais de trabalho, assim ficando, com uma ou outra agitação, até ser decretada a abolição da escravidão.

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Quem decretou essa abolição foi o comissário Sonthonax, um abolicionista branco que representava a República Francesa na colónia. Não o fez devido à revolta escrava de 1791, mas por causa da confrontação que, vinda já de trás, dilacerava a colónia, opondo brancos, mestiços, negros, monárquicos, republicanos, livres e escravos rebeldes, numa guerra de todos contra todos, agravada, depois, pela invasão da colónia por ingleses e espanhóis. Sem soldados suficientes para fazer face a tantas e tão sérias ameaças, Sonthonax proclamou, em Junho de 1793, que todos os escravos que se batessem pela República ganhariam a liberdade para si mesmos, suas mulheres e filhos; depois, em Agosto desse ano, foi mais longe e declarou a emancipação geral, concedendo direito de cidadania aos libertos. Paris ratificou a medida do seu comissário e ampliou-a: em 4 de Fevereiro de 1794, aprovou a abolição da escravidão não apenas em Saint-Domingue, mas em todas as colónias francesas.

Foi só depois dessa abolição, decretada em Paris, que Toussaint Louverture saiu de uma relativa subalternidade. Importa dizer que na época em que a revolta eclodiu Toussaint não era escravo, mas sim um negro livre possuidor de escravos. Importa dizer, também, que não teve qualquer papel nas fases iniciais dessa revolta, liderada por um negro chamado Boukman que, morto em combate, seria substituído por outros negros: Jean-François e Biassou. Importa dizer, ainda, que, adiante, Toussaint se juntou ao bando de Biassou e que, aí, foi ganhando relevância e prestígio pelas suas qualidades pessoais e de comando.

Jean-François e Biassou pretendiam apenas a liberdade para si próprios e para os que lhes eram próximos. O seu objectivo não era a emancipação geral. Toussaint pode ter tido outra posição, mas só se desligou desses líderes quando a França aboliu a escravidão, em 1794. Veio, então, com quatro mil combatentes, doravante livres, reforçar as forças republicanas francesas. Daí em diante teve uma carreira política e militar brilhante que o levou a recuperar todo o território perdido e a ocupar a parte espanhola da ilha, uma carreira que o guindou a chefe militar supremo da colónia, que pacificou e pôs a produzir (ainda que, para isso, tenha imposto o trabalho forçado e readmitido o tráfico transatlântico).

Muito haveria a dizer sobre Toussaint, uma figura extraordinária e trágica, mas o que importa reter é que, em 1791, ele já não era um escravo, não liderou a revolta de escravos e não foi ele que aboliu a escravidão, nem alguma vez afirmou tal coisa. Há vários académicos da esquerda woke que têm a arrogante pretensão de supor que sabem melhor do que os próprios personagens históricos aquilo que esses personagens sentiam e pensavam. Mamadou Ba não é um académico, mas vai nessa corrente e os que põem “like” nesses seus posts, engrossam-na. Ora, a verdade é que para Toussaint e os seus soldados haviam sido os franceses a abolir a escravidão e eles estavam-lhes eternamente gratos por isso. Era a 4 de Fevereiro, dia do decreto abolicionista de Paris — e não no 21 de Agosto da revolta escrava, como faz agora Mamadou Ba — que, em Saint-Domingue, Toussaint e os outros líderes negros, mestiços e brancos celebravam a abolição da escravidão, dando vivas à República. Do mesmo modo, todas as famílias negras ensinavam às suas crianças uma oração para pedir a Deus que protegesse Sonthonax, pois era a ele que deviam a liberdade.

É igualmente falso que Toussaint fosse contra os brancos. Aliás, uma das acusações que os negros mais lhe faziam era a de que ele protegia os plantadores brancos. Acresce que no triénio de 1794 a 1796 toda a sua acção foi feita em perfeita sintonia com o governador francês, general Laveaux, de quem Toussaint era subordinado e a quem prestava contas, tratando-o respeitosamente por “meu pai” e “meu benfeitor” (as coisas mudariam de figura com o advento de Napoleão e o rumo ditatorial de Toussaint, que viria a ser abandonado pelos seus generais, mas essa é outra história e eventual tema para um outro artigo).

E os escravos revoltosos de 1791? Muitos haviam morrido. Outros tinham-se rendido e aceitado a autoridade da França republicana. Outros, ainda, tinham permanecido sob as ordens de Jean-François e de Biassou, acabando por ficar na parte espanhola da ilha (São Domingos) ou por deixar a colónia para se fixarem na Florida e na Andaluzia. Toussaint referia-se a esses escravos revoltosos, que Mamadou Ba e outras cabeças militantes endeusam, como “os bandidos de Jean-François.”

Ou seja, a historieta sobre o Haiti que Mamadou Ba difunde e quer fazer adoptar pelas nossas escolas, é uma treta propagandística sem suporte nos documentos. É compreensível e atendível que a população negra olhe com orgulho para esses acontecimentos passados e os converta em monumentos de memória. Pela primeira e única vez, escravos revoltosos (e homens livres) africanos venceram alguns dos exércitos mais temidos da época como eram o francês, o britânico e o espanhol. Mas era bom que essa população negra e todas as outras, aliás, entendessem que a versão que lhes estão a vender se afasta muito da verdade, da razoabilidade e do equilíbrio, coisas sem as quais não há História, apenas mito.