A 18 de Novembro completaram-se cem anos sobre a morte de Marcel Proust, efeméride entre nós saudada por um silêncio quase total. Nada de mais natural e compreensível: em Portugal, escrever sobre Proust seria sempre um sinal inequívoco de falta de inteligência social, uma concentração em assuntos inúteis, fora da ordem do dia e sem qualquer interesse objectivo; uma prática excêntrica e dependente de hábitos penosos, morosos e caídos em desuso, como a leitura.

E no entanto é difícil imaginar um escritor que tenha marcado tanto o nosso século como este filho da boa burguesia francesa, íntimo da sociedade do seu tempo; este narrador único de mundos interiores, fascinantes, inconfessáveis, que, a partir de “uma vida sem interesse, sem aventuras nem viagens”, conseguiu levar-nos – aos que tivemos a sorte de o encontrar – numa interminável e extraordinária peregrinação de milhares de páginas através da natureza humana.

O génio de Proust está aí, na viagem que empreende e conta à procura do tempo perdido; uma viagem feita a partir do seu quarto – começada no 1ºandar do nº 102 do Boulevard Haussmann, no 8ème, e terminada no 4º andar do nº 44 da Rue Hamelin, no 6ème –, escrevendo deitado, isolado, em silêncio absoluto.

A cavalo entre dois séculos, Proust é o último grande escritor do século XIX e o primeiro do século XX. À la recherche du temps perdu foi publicada entre 1913 e 1927 – com a edição, em 1913, de Du coté de chez Swann (edição da Grasset, paga pelo autor depois da rejeição da Gallimard) e a publicação póstuma, em 1927, de Le temps retrouvé.

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Proust escreveu a palavra “Fim” na Primavera de 1922. Entre a primeira palavra, em 1906, e a última, em 1922, com a Grande Guerra e as revoluções comunista e fascista, desapareceria a sociedade e o tempo que a obra também retratava, mas não os enredos humanos e a intemporalidade da procura e do reencontro com os nossos tempos interiores.

Marcel Proust insistia muito na diferença entre o homem e o autor, dizendo-nos em Contre Sainte-Beuve (uma colectânea de ensaios sobre Balzac, Flaubert, Nerval, Baudelaire e outros publicada postumamente em 1954): “Um livro é o produto de um outro eu, que não é o que revelamos nos nossos hábitos, em sociedade, nos nossos vícios”. Charles Augustin Sainte-Beuve, que, na crítica, ligava obcessivamente a obra à personalidade do autor, não era, por isso, para ele, “um crítico profundo”. Para Proust, o escritor de À la recherche, na pele do narrador, pouco teria a ver com Marcel Proust, filho do Dr. Adrian Proust, médico reputado de uma família cristã de província, e de Jeanne Clémence Weil, da família Weil, judia rica e civilizada, bem à l’aise na Paris de Luis Bonaparte e de Haussmann, a capital da insurreição da Comuna, depois da derrota na guerra franco-prussiana. Marcel nascera aí, em Auteuil, a 10 de Julho de 1871.

A suspensão da inteligência

Determinante na cartilha proustiana era também a relação entre a inteligência e a escrita: “Cada dia atribuo menos valor à inteligência. Cada dia percebo melhor que é só fora dela que o escritor pode […] alcançar algo de si mesmo e a matéria única da arte. O que a inteligência nos traz sobre o passado, não é o passado”. Como tal, a Recherche não era “uma obra de raciocínio”, mas uma obra “ditada pela sensibilidade”, cujos “elementos mínimos” Proust percebera primeiramente no fundo de si mesmo, “sem os compreender e passando por dificuldades ao convertê-los em algo de inteligível […], como se fossem tão estranhos ao mundo da inteligência […] como um motivo musical”.

E se o autor, numa primeira fase, devia suspender a inteligência para alcançar “a matéria única da arte”, que só se alcançava fora dela, também em sociedade o excesso de inteligência e erudição eram mal vistos. E Proust, que valorizava a “compreensão ou o entendimento das coisas da vida e do mundo”, característica de uma geração francesa que ia de Bergson a Valéry e Charles Maurras, não deixava de nos transmitir a necessidade de suspender a inteligência ou de a nivelar por baixo em nome da “inteligência social” que a plena pertença à “sociedade” exigia. Assim, na Recherche, são muitos os passos em que ironiza sobre essa necessária contenção da inteligência: Oriane de Guermantes, por exemplo, lamenta que o sobrinho, Saint-Loup, não tenha a inteligência de se manter nos níveis intelectuais da boa sociedade e leia Nietzsche e Proudhon; Madame de Villeparisis, tia de Oriane e tia-avó de Saint-Loup, também destoa do seu mundo pela inteligência e pela cultura, chegando até a parecer “de outra condição”; e enquanto Jupien, o locatário dos Guermantes, transformado em gestor de um prostíbulo masculino do seu amante e protector, visconde de Charlus, tem a inteligência “d’un homme de lettres”, a princesa de Parma, a grande senhora de Paris, ao ver que o narrador usa borrachas americanas para proteger as solas dos sapatos nas intempéries, elogia-o com um “voilá un homme inteligent!”.

Além de uma certa subversão criativa, obrigatória na linguagem dos escritores que, de Joyce a Céline, marcam novos tempos, Proust mantém na narrativa uma ironia e uma ambiguidade que diferenciam a sua viagem por um mundo e uma classe social prestes a morrer com a Grande Guerra – a oligarquia francesa, mistura dos sobreviventes da aristocracia dizimada pelo Terror e das elites bonapartista e orleanista. Estes sobreviventes da Revolução, juntamente com as burguesias contadas por Balzac e Zola, acabariam por esmagar as revoluções do povo – em 1848 e na Comuna, no ano em que Proust nascera.

Mas fora as inevitáveis referências em À la receherche às políticas e às histórias da História, do caso Dreyfus à Grande Guerra, como foi e qual foi a relação de Proust, do Proust-pessoa, com a política, as ideias, as ideologias?

A política daquele a quem Sartre chamou pederasta e burguês

Num texto que já foi muito citado, mas que deixou de o ser, Sartre definiu Proust como o pináculo do “espírito analítico”, um agente da “propaganda burguesa” perpetuador dos privilégios de classe, e a sua obra como disseminadora do “mito da natureza humana” e da existência de “paixões universais”. Pederasta e burguês, Proust ter-se-ia valido da sua experiência homossexual para pintar o amor de um homem rico e ocioso por uma mulher, protótipo do objecto de desejo amoroso: “Proust s’est choisi bourgeois, il s’est fait le complice de la propagande bourgeoise, puisque son œuvre contribue à répandre le mythe de la nature humaine”.

Sartre ataca Proust, como ataca Flaubert e Baudelaire, por serem escritores burgueses. A Proust acusa-o ainda de ser pederasta, mas não o pederasta assumido, progressista, libertador; antes o pederasta hipócrita que encarna “o drama do pederasta burguês”, na contradição do ser profundo e do estar, mascarando com uma qualquer “Albertine” a sua paixão irregular por um qualquer “Albert”. E compara-o, em desfavor, com um outro escritor, Jean Genet, esse sim um progressista, um “homossexual assumido e exemplar”.

Na bipolarização da França quando do famoso Affaire Dreyfus, Proust foi, como o irmão Robert, um dreyfusard, tomando o partido que mais se identificava com a Esquerda e encabeçando um “manifesto dos intelectuais” a favor de Dreyfus. De qualquer forma, e ainda que a divisão pró-Dreyfus / anti-Dreyfus não definisse em absoluto Essquerda e Direita, Proust assumiria depois posições críticas da Esquerda, do Republicanismo, da Revolução e do Terror (hoje, devido à publicação da correspondência de Proust em 21 volumes, conhece-se muita coisa sobre estas suas posições políticas).

Em conversa recordada por Maurice Duplay, Proust faria as delícias de Sartre ao condenar a Revolução “por ter perseguido sistematicamente tudo o que era gracioso e amável”, com “uma legião de mulheres mandadas para o carrasco”, a começar pela rainha Maria Antonieta. Para o autor de À la recherche, o Terror tinha sido “um acesso de demência colectiva” e “os convencionais, ao julgarem-se romanos, eram como doidos que se julgavam generais, arcebispos, imperadores!”

De qualquer modo, nos seus últimos anos, só podendo ler um jornal, Proust lia todos os dias L’Action Française, o diário do movimento monárquico e conservador de Charles Maurras; porque ali podia ler o próprio Maurras, “uma cura de elevação mental”, “a coluna luminosa” sobre política internacional de Jacques Bainville e, claro, Léon Daudet. Era um jornal fortemente anti-dreyfus, e Proust, ao louvá-lo, justificava o seu dreyfusismo de juventude como ditado pela “fidelidade à Mãe” e por uma “convicção pessoal sobre a inocência do capitão e um sentimento humanitário para com um inocente”.

Isto passava-se em 1920. Proust estava grato a Léon Daudet, que se batera para que À l’ombre des jeunes filles en fleurs ganhasse o Goncourt. E escrevia, empolgado, no prefácio a Tendres stocks,de Paul Morand: “À mes maîtres, MM. Léon Daudet et Charles Maurras, et à leur délicieux émule M. Jacques Bainville”. Em 1896, Maurras assinara uma recensão a Les plaisirs et les jours, um texto profético sobre as qualidades estilísticas do estreante; e, em Setembro de 1913, sabemos também pela correspondência que Proust se consideraria honrado caso viesse a escrever para o L’Action Française.

Nos últimos anos de vida do escritor, e já depois da atribuição do Goncourt, o diário monárquico continuava a acompanhar as publicações de Proust atentamente, elogiando a sua “análise psicológica levada até aos limites do possível.” E Daudet, o terrível polemista Léon Daudet, filho de Alphonse Daudet, cujo salão Proust frequentara, o Léon Daudet reaccionário e anti-semita, escreveria um editorial intitulado: “Um novo e poderoso romancista: Marcel Proust.”

Para Daudet, Proust aparecia como pioneiro de uma “nova escola de romancistas”; e, em tempo de guerra, contrapunha a psicologia proustiana, “psicologia francesa, herdeira da filosofia greco-latina, que sempre procura a luz e a claridade na análise das operações do espírito” à “psicologia germânica” que “confunde a obscuridade com a profundidade”.

Contudo, havia limites: quando saiu Sodoma e Gomorra, o quarto volume dos sete de À la recherche du temps perdu, em que o narrador descobre e descreve os mundos da inversão sexual, o L’Action Française não referia o livro, com Daudet a escrever a Proust, explicando-lhe que, tendo em conta os leitores do jornal, seria embaraçoso falar de uma obra com tal título e tal conteúdo. Proust viria depois a queixar-se em carta a um amigo, ridicularizando o embaraço púdico do L’Action Française: “un journal dont la pudibonderie est comique”.

Uma polémica inútil

Como não vale a pena usar e explorar a simpatia e o activismo pró-Dreyfus do jovem Proust para o alinhar à esquerda, também não será de explorar e levar à letra estas suas relações com a Action Française para o alinhar como um entusiasta da direita nacionalista e reaccionária. A influência intelectual de Maurras e da Action Française exerceu-se praticamente sobre toda a intelectualidade francesa nas quatro primeiras décadas do século XX. Como escreveu Robert Kopp na Revue des deux mondes, em Dezembro de 2016, “de Proust a Mauriac, de Gide a Malraux, a maior parte dos escritores franceses, sofreram, num momento ou noutro, a atracção de Maurras, […] e muitos deles foram, duramente marcados pelo seu pensamento; de que outros tantos também se afastaram.”

No fundo, as opções políticas do Proust-homem, o seu enquadramento social, a sua sexualidade, as suas contradições, o seu tempo, o seu lugar e o seu modo, acabam por ser relativamente irrelevantes – ou por só se tornarem relevantes porque se eternizam e chegam até nós transfigurados na “matéria única da arte”, consubstanciando o tal “mito da natureza humana” que Sartre nele denunciava. É, por isso, da escrita de Proust e não tanto do que o autor diz e faz fora do texto, que poderá partir uma leitura política da obra, em termos de valores, ideias e conceitos.

Talvez seja um bom pretexto para o reler, mesmo incorrendo na incorrecção social de ali encontrar, expandida, a natureza humana. Sempre nova e sempre a mesma.