Já dizia Valter Hugo Mãe em O filho de mil homens, que “era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença.” E não estivesse eu a convalescer de uma virose gástrica e teria achado tal passagem uma coisa disparatada.
Quando me vi prostrada em casa a debater-me entre dores de estômago e vómitos circunstanciais, virei-me para os livros como último recurso. Vi na leitura a minha única bóia de salvação num mar de tormento físico. A esperança de habitar momentaneamente uma outra realidade na qual o meu eu corpóreo se esfumasse, limitando-me à narrativa.
Quis o destino que esbarrasse no entrave de não ter à minha disposição qualquer escrito por mim não apreendido. Até aqui conservava o hábito de só adquirir uma nova leitura a quando o término da última, não fosse eu cair em tentação e cometer o pecado de conciliar a leitura de duas narrativas diferentes em simultâneo. (Cruzes, credo. Livrai-me Deus nosso senhor todo poderoso de tratar uma obra com tamanho desprezo).
Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que na minha área de residência não havia n-a-d-a, nenhuma superfície comercial ao alcance de menos de uma paragem para vómito que me proporcionasse o prazer de adquirir uma distração para os meus tempos de agonia.
Foi então que me questionei: “Mas porque raio é que ainda não se vendem livros nas farmácias?”. Com uma alta incidência por concelho e com um regime de serviço permanente ocasionalmente ao nosso dispor, as farmácias constituem o local ideal para a venda de obras imprescindíveis à satisfação das necessidades do intelecto. E acreditem que seria tudo muito mais fácil. Passaríamos a aviar livros como quem avia medicamentos: “Era um Paracetamol e um Adeus às Armas, por favor.” E assim se curavam dois coelhos de uma cajadada só, a dor física e a dor da alma.
Na vida de todos nós, bibliófilos, inúmeras vezes constatamos o poder que uma boa leitura tem face às adversidades do dia-a-dia. Quantos de nós, num momento de aperto de amores (e num ato de psicologia reversa) não nos afundamos num bom romance, emergindo posteriormente à superfície, de coração sarado? É mais do que sabido que os livros têm um poder milagroso e que os mesmos ainda não tenham lugar na secção farmacêutica de medicamentos homeopáticos deixa-me muito desgostosa.
Refiro ainda a vantagem que seria podermos nos aproximar de um balcão, balbuciar as necessidades do espírito e esperar, do nosso receptor, o título da obra curativa. Pois quanto a vocês não sei, mas eu preciso sempre de quem me prescreva livros: “Mas já leste?”, “E então, gostaste muito ou só mais ou menos?”, “A escrita não era maçadora?”. E já não caio nas artimanhas das redes sociais que apenas aconselham obras de carácter universal, capazes de curar um leque incontável de tormentos do espírito. Sofrimentos de carácter superficial, universalmente partilhados, que não requerem mais do que um remédio de fraca dosagem. Quase como um ben-u-ron literário, sabem? Dor de dentes, unhas ou cabelo? Ben-u-ron. Desgosto amoroso, problemas com a(o) sogra(o) ou traumas de infância? O Alquimista.
É uma pena a falta de leitura não se converter numa doença. Adquirido o estatuto de enfermidade e poderíamos passar a sustentar-nos na afirmação: “Não posso, estou com falta de leitura.” para nos esquivar-nos a uma quantidade bem composta de eventos aborrecidos. As televisões passariam a inundar-se de anúncios literários preventivos: “Com a chegada dos meses mais frios, não se descuide! Previna-se da melancolia sazonal com um Lolita abrasador!”. E certas e determinadas leituras converter-se-iam em vacinas vivamente recomendadas à população mais vulnerável: “Se tem idade igual ou superior a 65 anos, proteja-se contra as doenças do intelecto com O Estrangeiro possante, e garanta imunidade até um ano!”.
Uma utopia na qual vos deixo agora a fantasiar pois, vão-me desculpar, mas tenho que ir. Estou com falta de leitura!