Os meios de comunicação ocidentais estão a fazer eco do discurso oficial do regime iraniano de que se trata da vitória do candidato “moderado”. Contudo, o primeiro ponto de suspeita vem, precisamente, dessa alegação. E estas dúvidas são acompanhadas por uma certeza: o seu nome constou nos boletins de voto porque foi aprovado pelo Conselho dos Guardiões, o “conselho” que desempenha um papel crucial no sistema político iraniano, sendo responsável por examinar e aprovar as candidaturas para as eleições presidenciais e parlamentares com o poder de vetar candidatos que considere não alinhados com os princípios da República Islâmica do Irão. Composto por 12 membros: seis juristas religiosos nomeados directamente pelo Líder Supremo Ali Khamenei (e, consequentemente da sua confiança directa) e seis juristas civis eleitos pelo Parlamento a partir de uma lista proposta pelo Chefe do Poder Judiciário (e, consequentemente da confiança da maioria do Parlamento totalmente controlado pelo regime). Ou seja: este “moderado” está “alinhado” com “os princípios da República Islâmica do Irão”. Se não estivesse nunca teria passado pelo filtro do Conselho dos Guardiães.
Outro ponto de alerta reside na principal promessa eleitoral de “acabar com isolamento do país”: o que corresponde exactamente ao desígnio do regime afrontado por uma crise económica profunda, pela contestação social criada pelos abusos aos direitos das mulheres (“Revolução Mahsa Amini”) e que resulta da corrupção generalizada, de má gestão económica acentuada pelas sanções internacionais que apenas a proximidade com as autocracias chinesa e iraniana tem aliviado. Um terceiro ponto de alerta é encontrado nas declarações de que Pezeshkian venceu as eleições contra um “oponente conservador de linha dura, Saeed Jalili”: este é o método clássico de apresentar o pior como forma de legitimar o menos mau e transformá-lo em “bom”.
Independentemente de todos os “truques” o certo é que a participação eleitoral foi boicotada pela maioria daqueles que se opõe ao regime e que a abstenção – sem coincidências – foi a mais elevada desde a instalação do regime dos mullahs em 1979: 60% (ou muito mais como declaram alguns activistas). Algo que não é estranho à viralização nas redes sociais iranianas da hashtag “minoria traidora” que apelava ao boicote eleitoral. Com efeito, a sociedade iraniana de hoje está profundamente dividida, com a juventude esmagadoramente contra o regime, e os meios mais rurais e de idade mais avançada alinhados com o regime dos Mullahs.
Tudo isto já aconteceu antes com Mohammad Khatami, presidente do Irão entre 1997 e 2005, que se apresentava numa plataforma dita “liberalizante e reformista” e que defendia a liberdade de expressão, os direitos humanos (e, em tese, os direitos da mulheres) e o robustecimento da sociedade civil. Contudo, na prática, nenhuma reforma duradoura foi implementada, porque o regime mantinha o controlo de todos os sectores do Estado. E quando Khatami deixou o poder tivemos a violenta onda de repressão de 2009/20; vários condenados à morte; o próprio Khatami em dificuldades com o regime a exigir a sua prisão, julgamento e execução e, em abril de 2010 a impedir a sua viagem ao estrangeiro para participar numa conferência internacional. Em 1997 o regime parece ter cometido um erro de avaliação ao permitir a eleição de um candidato demasiado reformista tendo entrado depois numa política de contenção de danos. Em 2024 aprendeu e manterá um controlo mais apertado de um candidato que avaliou como mais alinhado e previsível.
Com efeito, este candidato “reformista” parece mais alinhado do que Khatami em 1997. Desde logo, Pezeshkian, ao ser eleito sublinhou que era “um ‘principista’ (pessoa que defende os conceitos que sustentam a República Islâmica) e a partir destes princípios é que buscamos reformas” admitindo assim que não tencionava afrontar o regime nem o poderoso Líder Supremo, Chefe de Estado e comandante-em-chefe das forças armadas Ali Khamenei, por quem nutre uma profunda “admiração”.
Por outro lado, Pezeshkian não é alguém que caiu de repente na política: foi parlamentar durante cinco legislaturas e chegou a ser ministro entre 2001 e 2005. Esta também não é a primeira vez que Pezeshkian tenta ser eleito: já o tinha feito duas vezes antes, tendo sido reprovado numa delas pelo Conselho dos Guardiões devido ao seu apoio aos protestos populares que estouraram contra os resultados eleitorais de 2009. Se agora foi considerado como um possível candidato viável (o Conselho dos Guardiães rejeitou 74 outros candidatos) é porque o Conselho acredita que o discurso e acção de Pezeshkian está agora mais alinhado do que antes e que está “suficientemente leal” ao regime islâmico.
A eleição de Masoud Pezeshkian não é – para já – mais do que uma ténue sinal de vontade de mudança por parte de algum eleitorado mais conservador iraniano (o eleitorado realmente reformistas manteve-se longe das urnas). Se não o é já Pezeshkian pode ser transformado facilmente numa marioneta do regime para procurar levantar o regime de sanções e permitir alguma abertura económica a uma sociedade em crise social e económica.
Um sinal adicional de que Pezeshkian não passa de mais uma manobra do regime dos mullahs foi de que um dos seus primeiros actos, depois de ter sido eleito foi uma visita ao túmulo de Rouhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica por forma a “renovar a sua aliança aos ideais de Khomeini” num gesto teatral que recebeu de imediato os elogios dos media controlados pelo regime.