Alexander Grothendieck (1928-2014) foi provavelmente o maior matemático da segunda metade do século XX. Recebeu o mais prestigiado prémio em matemática, a Medalha Fields, tal como René Thom (autor da Teoria das Catástrofes) que, contudo, viria a abandonar a matemática confessando-se um matemático “insignificante” ao lado de Grothendieck. O que trouxe de novo Grothendieck? Olhou para várias áreas da matemática (geometria, teoria dos números, topologia, análise complexa, e muitas outras), conseguiu abstrair do contexto, e concluiu: “Estão todos a fazer o mesmo!!

Que importância tem isto? É importante porque ajuda a perceber o que é a matemática. Enquanto as outras ciências são conhecimento de objeto (o objeto da física é a matéria/energia, o da biologia os seres vivos, etc.) e procuram aproximar-se do objeto (com instrumentos cada vez mais potentes), a matemática segue caminho inverso: busca abstrair do objeto, emancipar-se do contexto original (geométrico, numérico, etc.) de forma a identificar mirantes que permitem vislumbrar o todo. Grothendieck é idolatrado precisamente porque mostrou como ninguém um brutal poder de libertação do objeto, do contexto, uma capacidade quase sobrehumana de cumprir matemática!

Em sentido semelhante se pronunciou Hilbert, o matemático mais influente da primeira metade do século XX: “as nossas afirmações terão de se aplicar tanto a pontos, linhas e planos como a mesas, cadeiras e canecas de cerveja”. A matemática é a arte de pensar com lógica, nitidez e rigor. Não importa se se usa círculos ou triângulos, primos ou avós, terças-feiras ou rabanetes. E a arma fundamental do cérebro matemático é uma imaginação livre, solta, que se aventura a pensar o que ainda não foi pensado. Quando disseram a Hilbert que um aluno trocara a matemática pela poesia, ele respondeu: “Fez bem. Nunca achei que tivesse imaginação suficiente para ser matemático”.

O ensino da matemática é abstrato precisamente para garantir o necessário distanciamento, para não viciar as pessoas num determinado contexto ou tipo de aplicações. Por exemplo, aprende-se a tabuada em abstrato (“7×1, 7; 7×2, 14; 7×3, 21”), porque assim é potencialmente aplicável a tudo; há pois uma recusa secular em associar a tabuada a um contexto particular, do tipo:  “se 7 amigos te derem, cada um, 1 rebuçado de morango, mesmo que desconfies dessa generosidade tão estranha, ficas com 7 rebuçados de morango; se esses 7 amigos te derem, cada um, 2 rebuçados, mesmo desconfiado ficas com 14 rebuçados”, etc. Aprender a tabuada assim seria um pesadelo, uma confusão, um cambalear entre aspetos irrelevantes. Já a abstração liberta, centra no essencial, e abre as portas a mil aplicações.

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A conta de “dividir” apareceu certamente quando foi preciso distribuir coisas por pessoas. Mas graças à libertação desse contexto feita por muitos Grothendiecks desta vida, conseguimos ver que distribuir rebuçados por amigos é essencialmente igual a distribuir metros por segundo (velocidade) ou distribuir uma soma de observações pelo número de observações (média).

Mas esse poder de abstração não será coisa só para alunos especialmente dotados? Não. Primeiro, por um paradoxo: quanto mais se sabe, menos é preciso saber. Os matemáticos gregos tinham imensas fórmulas para o cálculo das áreas mais diversas. Felizmente, Descartes, Newton e Leibniz, libertaram-nos do contexto e agora podemos ter na cabeça uma técnica que ocupa muito menos espaço, é muito mais fácil de aplicar, permite fazer tudo o que os gregos faziam, e ainda muitas outras coisas! Certo: mas serão muitos os que conseguem ter essa técnica na cabeça? Em alguns países, todos os alunos do 12º ano conseguem. Em Portugal, qualquer aluno do 1º ano de engenharia, medicina, gestão, ou os alunos maravilhosos do 1º ano de bioquímica! Grothendieck chegou a técnicas ainda mais sintéticas que as anteriores, mas aplicáveis a muitos mais contextos e por isso com um poder explicativo muito superior. Diz-se que o saber não ocupa lugar, mas talvez seja mais apropriado dizer: o saber mais ocupa menos lugar; o saber muito mais ocupa muito menos lugar;  é o saber tudo que não ocupa lugar!

Vem tudo isto a propósito de uma nova maneira de ensinar matemática: a “Aprendizagem em Contexto” (“Context-based learning” ou “The Salter’s Approach”). Defende-se que é preciso aprender através de exemplos reais em vez de se aprender a regra geral libertada do contexto. Esta abordagem tem bastante público em química e física. A sua exportação para a matemática é que é polémica porque não é nada óbvio que um método eventualmente bom para ensinar ciências de objeto seja bom para ensinar a ciência da abstração do objeto.

Nunca conheci um professor de matemática que questionasse a utilidade pedagógica de alguns exemplos reais ou históricos, mas o filet mignon do ensino da matemática é ajudar os alunos a, qual águia, subir às alturas de onde se vê o todo. Essa elevação não se dá substituindo uma capacidade intelectual pelo reflexo condicionado de colar técnicas gerais a problemas/contextos particulares, um processo genuinamente anti-matemático que em vez de subir com a águia para ver o todo, mete a águia no galinheiro. E, portanto, por estas razões, entre outras, muitos professores de matemática dos vários níveis de ensino olham para a “aprendizagem em contexto” como um exemplo de que tudo o que é de mais é moléstia.

Mas não será possível provar que esses professores estão enganados? Sim. Basta mostrar que a nova “aprendizagem em contexto” dá melhores resultados que a “aprendizagem abstrata”. As novidades são bem-vindas quando há prova científica de que são progressos. Ser novidade não basta.

Cabe, pois, aos promotores da aprendizagem em contexto fazer a demonstração dos seus benefícios. E isso é simples: 1º) identificar claramente as variáveis e métricas em que a aprendizagem em contexto seria vantajosa; 2º) apresentar pelo menos duas experiências (ie, alunos selecionados aleatoriamente para integrarem programas piloto de “aprendizagem em contexto” juntamente com turmas de controle);  3º) avaliação feita por pessoas não relacionadas com quem desenhou e desenvolveu a experiência, e, 4º) publicação dos resultados em revista internacional com arbitragem. Esta demonstração não é substituível por discursos encantadores, “ações no terreno”, e decisões auto-confiantes.

Infelizmente, em muitos países, Portugal incluído, as escolas são vistas como enormes repositórios de cobaias grátis e a política educativa como “investigação em ação”. É como se o ministério da saúde se substituísse à investigação farmacêutica, impondo a toda a população e sem teste prévio o uso de qualquer fármaco novo.

No dia 20 de novembro o Professor William Schmidt, Chair do PISA 2021 Mathematics Strategic Advisory Group, esteve em Lisboa a explicar que o PISA 2012 incluía perguntas para avaliar o ensino de matemática em contexto, e que os dados não podiam ser mais claros: demasiado contexto piora os resultados! Isto contrasta com a prestação dos alunos com formação abstrata que são tanto melhores a resolver problemas quanta mais matemática aprendem. Esta descoberta já foi objeto de uma crónica do Professor Nuno Crato aqui no Observador.

Em vez de uma experiência científica localizada e de acordo com o protocolo das boas práticas em educação, preferiu-se agir primeiro e depois logo se vê. Já se viu. E foi uma pena.

Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, Professor Catedrático do Departamento de Matemática da Universidade Nova de Lisboa
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.