Deu-se nos primeiros dias de Novembro, há seis anos, no rescaldo das negociações que ditaram a formação do XXI governo constitucional, ao arrepio dos resultados das eleições anteriores. Éramos mais de quinhentos na ampla sala beirã, rusticamente improvisada para acomodar tamanha agremiação ativista. Mimetizava um daqueles plenários à antiga, hoje quase só encontrados nos livros, onde todos podem usar da palavra à vez e se tratam – sem se conhecerem – por “tu”. Com gente de todo o país, mas sobretudo do Norte, assim reunimos espontaneamente em resposta ao apelo informal feito pelo Francisco Assis, destinado a mobilizar os militantes que se opusessem à tomada do poder governamental por via do acordo com a esquerda radical, protagonizada em 2015 por António Costa.
Respondendo a um repto descerimonioso, fora dos canais de comunicação partidária, os presentes ter-se-iam sentido convocados, identificando-se com a mensagem do eurodeputado. Eu escutara-a na televisão, e fui. Nós, os socialistas contra a geringonça, fizemos-nos assim ouvir, emanando o sentimento de descontentamento latejante no seio do Partido. Sequentemente isso mudou: muitos se convenceram, ou se deixaram convencer, pelas valias negociais do secretário-geral, alegadamente “ágeis” e “brilhantes”; houve quem se deslumbrasse genuinamente pela fiabilidade da solução encontrada e quem se acomodasse cinicamente ao novo poder instalado, quem se desmobilizasse, quem cedesse e, com o tempo, os encontros dos irredutíveis oposicionistas limitar-se-iam a alguns almoços de frequência gradualmente mais espaçada.
Independente dos desenlaces posteriores, a contestação citada encontrava-se assente em pressupostos muito mais profundos do que a conjuntura momentânea parecia determinar. Nas semanas seguintes, conversei com dirigentes em concelhos da cintura industrial do Tejo que não haviam presenciado o encontro, nem conheciam (pessoalmente) Francisco Assis. “Sou Social-Democrata” foi-me dito por um vereador na oposição. “Nunca me aliarei a Comunistas”. Escutei “Não sou um ideólogo, só me interessa que estes tipos fiquem longe do poder”, assumido pelo tesoureiro de uma junta no concelho vizinho do primeiro. Esta perseverança – granjeada a sul, nos municípios onde os embates autárquicos ocorrem com o PC, e a Norte onde os comunistas foram ferozmente combatidos durante o PREC – tem raízes históricas mais antigas do que o regime, mas não é preciso revisitar as legislativas de 1969, onde CDE e CEUD se digladiaram, ou o revisionismo de Bersntein para compreender que as duas organizações – PS e PCP – auspiciam modelos de sociedade radicalmente distintos.
Em “A Cortina de Ferro”, Anne Applebaum detalha as desventuras a que os colaboracionistas na Europa de Leste foram acometidos e, ainda que os riscos de obliteração (política e literal) não se verificassem, eles estiveram bem presentes em 1975 e perduraram no imaginário coletivo do Partido Socialista, mesmo junto de militantes filiados e até nascidos muitos anos depois do Verão quente. Um sobrevivente de então, antigo governador civil no centro do país, desabafou noutro momento “Fui dos que defendeu com armas a sede da distrital”. Ainda que o argumento da incompatibilidade ideológica facilitasse a demarcação dos moderados “Socialistas Liberais”, existiam muitos outros argumentos que extravasam a temática da aliança profana.
Exporei os meus, estruturados nos cinco grupos das valências que previ, no meu discurso daquela noite, ameaçadas ou incumpridas pela então anunciada geringonça.
A solidez. A governação assente numa geometria variável que dispensa acordos coligativos não promove a estabilidade política e está suscetível à dissolução na espuma dos dias, como de facto se veio a verificar;
A transparência. A plataforma de entendimento estabelecida entre os partidos participantes não tem, de facto, uma incidência parlamentar, mas “pré-parlamentar”, ofuscando as condições do seu ajustamento e ocultando as posições de cada parceiro negocial. Aquilo que os Portugueses conhecem sobre as matérias acordadas e sobre a intervenção de cada elemento da geringonça na governação está limitado e passa do debate do parlamento para as antecâmaras da negociação. As plataformas de entendimento primaram assim pela opacidade, ao ponto de a rutura entre as partes, decorrida no fatídico dia 26 de Outubro, se ter dado antes da votação do OE na especificidade, demostrando que a aprovação e reprovação do Orçamento decorrera e decorreu ao longo dos seis anos, sempre por razões não-orçamentais; ao mesmo tempo, foram parcamente escrutinadas as nomeações de militantes comunistas e bloquistas para lugares na máquina do Estado, de que a ex-deputada Rita Rato terá sido apenas um dos exemplos, e que mais terão contribuído para consolidar a geringonça do que os acertos programáticos ou a responsabilidade de representação dos seus eleitorados;
A estratégia. Fortemente condicionado às necessidades de uma minoria profundamente conservadora, agrilhoado ao mínimo denominador e incapaz de definir um programa comum, o PS limitou as suas aspirações à administração corrente da máquina estatal, tendo-se obstinado em esvaziar as pretensões contabilísticas da direita (a única ameaça que previra à sua hegemonia eleitoral), sem definir uma única ideia ou rumo para o futuro, estagnando-o e estagnando-nos;
Da organização política nacional. A propalação de uma casa comum das esquerdas, ainda que fictícia, só podia ter como consequência a reorganização da oposição, abrindo espaço para retóricas perniciosamente contundentes a que alguns carreiristas demagogos, mimetizando fenómenos internacionais, oportunisticamente se prestaram, trilhando uma tipologia de movimentações inéditas no Portugal democrático. Ao mesmo tempo, o consentimento tácito do PC silenciou os sindicatos afetos e o destrate indecoroso do governo à UGT atirou os movimentos de trabalhadores para os braços da nova direita, como aconteceu em França, transposição essa que terá efeitos nocivos no futuro das querelas laborais, estilhaçando a unidade mas também a relevância sindical;
Por fim, um argumento de ordem ética: António Costa perdeu as eleições de 2015, sofrendo uma pesada e humilhante derrota numa eleição fácil de disputar, contra um governo desgastado pela Troika. Se quisermos uma comparação, o seu fracasso foi bem mais liminar do que aquele que em 1993 o apartou da Câmara de Loures (apenas 1722 votos e não os 337 735 votos das legislativas de 2015, uma diferença 195 vezes maior, 5.7 vezes superior à proporção entre os eleitorados camarário em 1993 e nacional em 2015) mas, ao contrário do sucedido então, quando concedeu a vitória a Demétrio Alves (forçado então pelo artigo 44º do Decreto-Lei n.º 100/84 – mais tarde, artigo 57º da Lei 169/99 – que determina ser “presidente da câmara municipal o primeiro candidato da lista mais votada”), refugiou-se em entrelinhados constitucionais para prorrogar a sua carreira política.
A derrota de António Costa – 6.3 % em número de votos, 9.1 % em mandatos eleitos – foi várias vezes superior à que separou, este ano, Olaf Sholz (SPD) de Armin Laschet (CDU) na Alemanha – 1.6 % e 1.2 % respetivamente; todavia, a maturidade do parlamentarismo alemão e a hombridade dos principais concorrentes impediu o líder democrata-cristão de agregar os demais partidos de direita (AfD e FDP) mesmo que, com eles, conseguisse granjear a alvitrada maioria absoluta. Perante este facto, toda uma geração politizada pela bancarrota de 2011 alineou-se da participação pública, sob a convicção de que não valia a pena intervir ou votar se as jogatanas de bastidores tomam preponderância na definição de protagonistas face à preferência popular.
Estas foram (as minhas) posições de princípio que antecederam a governação de facto mas daí, dos seis anos decorridos, emanaram muitas outras, como a hipocrisia das cativações, o enxameamento de boys, a suborçamentação de sectores vitais e o corte do investimento público, o crescimento do CHEGA, de que a liderança de António Costa – na ânsia de desacreditar o PSD – foi frequentemente cúmplice, ou as estatísticas da emigração. Ao fim e ao cabo, os produtos da má governação confirmaram as nossas piores previsões. Some-se-lhe a hecatombe de mortandade durante a época do covid e a debandada das chefias hospitalares e constate-se como teria sido melhor para o país se a Geringonça não se houvesse estabelecido.
Seis anos depois, não somos o mesmo país: estamos mais envelhecidos, comparativamente mais pobres, visivelmente mais dependentes, definitivamente mais desalentados. O genocídio nos lares foi tão profundo que diminuiu a esperança média de vida e provou a disfuncionalidade do edifício da Segurança Social, bem como a inviabilidade do Ministério da Saúde, cuja credibilidade teve de ser adjudicada (em segunda instância) a um militar de carreira, apolitizado.
Tampouco somos o mesmo Partido, ora mais desmobilizado e inerte, ora mais viciado nos facilitismos do poder e por isso mesmo incapaz de se retirar para regenerar os seus quadros e pretensões. Independentemente do resultado que alcançar nas eleições vindouras, sei aquilo que o PS não terá: a placidez necessária para redefinir prioridades e programas, reavaliar o que tem a propor ao país votante, provar que tem mais para dar do que clientelismo e navegação à vista, chegando, como Guterres acusou outrora o PSD, “atrasados a todas as reformas estruturais”.
Os seis anos perdidos pelo país foram-no também pelo Partido Socialista, que se esquivou de recentrar no seu estigma democrático e reformista. E a crueldade de comprovar haver tido razão antes de tempo, abate-se agora sobre nós, que naquela noite de 2015 a convite do Assis, reunimos na Mealhada.