Talvez seja este o nosso estranho e tormentoso paradoxo aqui na América—somos estáveis e definidos, somente, quando estamos em movimento.
Thomas Wolfe in You Can’t Go Home Again

Um dos assuntos mais polémicos e mais pertinentes para a existência da nação americana, e ainda hoje discutido nos Estados Unidos da América, é o debate entre a denominada cura para todos os males: o melting pot e o mosaico humano, a miríade de culturas e grupos étnicos que compõem as terras do Tio Sam, no que realmente já somos autênticos centros multirraciais e multiculturais.  Embora este debate seja tão antigo como a independência do país, continua a ser inflamatório na esfera pública e tema preferido de muitos escritores do hífen: aqueles que contam a verdadeira história americana – uma história de muitas histórias. Enquanto nos institutos e centros mais conservadores, académicos e políticos preferem olhar para a nova realidade com lentes de um passado que não foi assim tão idílico. É um dilema americano que tem de ser enfrentado e já.   

Primeiro, dir-se-á que para os Estados Unidos adquirirem o status de uma nação verdadeiramente cultural teriam de adoptar a ideologia social de tal sistema, uma ideologia predicada na convicção de que nenhum sistema de valores é superior a qualquer outro sistema. É evidente, pela história dos últimos dois séculos e meio e pelas ocorrências dos momentos contemporâneos, que muito terá de mudar nos Estados Unidos para se atingir o verdadeiro multiculturalismo, embora a América também nunca tenha sido a terra do verdadeiro melting pot. Tal como escreveu o crítico Eduardo Seda Bonilla no ensaio “As Vicissitudes de se ser Porto-riquenho” incluído na antologia Hispanic-American Writers (Escritores Hispânico-Americanos), editado há anos pelo conceituado e polémico crítico Harold Bloom: “Os Estados Unidos são um país de pseudo-étnicos, culturalmente assimilados mas socialmente segregados. Assimilação cultural no melting pot implica segregação social e hierarquia racista. A hierarquia racista é por vezes chamada “ordem debicada”.  Socialmente segregados, mas culturalmente assimilados, os pseudo-étnicos são colocados numa pirâmide hierárquica, no topo da qual está o protestante, anglo-saxónicos.”   

Entretanto, e com a mudança significativa que ocorreu na demografia americana, particularmente nas últimas quatro décadas, com a vasta maioria dos emigrantes provenientes da Ásia, do México ou da América Central, o país enfrenta novos desafios e a idiossincrasia americana contempla uma amálgama de grupos e subgrupos. O historiador Arthur Schlesinger Jr. descreveu magistralmente a contemporaneidade americana: “A identidade americana nunca poderá ser fixa e final; estará sempre em construção. Mudanças na população trouxeram mudanças na característica nacional e continuarão a fazê-lo”.

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Porque os Estados Unidos são essencialmente um dos países mais diversos do globo, uma nação de muitos contrates, há muito que se defronta com a diversidade, embora sempre o tenha feito de uma forma inconsistente e até mesmo inerte. Daí que os seus escritores, mais concretamente, os escritores étnicos, tenham contribuído imenso para este debate que é contínuo, e necessário, em terras americanas. As narrativas dos escritores étnicos são parte intrínseca da literatura americana e comprovam que a América só pode ser igual a si própria quando engloba a sua colecção complexa de tonalidades ora harmoniosas, ora dissonantes. Como um povo de muitos povos, a literatura dos Estados Unidos terá de abraçar todos os ritmos, aqueles que são regulares e os que são assimétricos.

Desde a década de 1960 que os Estados Unidos têm debatido, com algum realce, o multiculturalismo.  E desde então, que o escritor étnico (incluindo os luso-americanos, a vasta maioria com raízes nos Açores) tem contribuído para o debate, trazendo as histórias do seu grupo para a ribalta do cenário literário. Os temas de cultura e identidade, numa América que promovia o melting pot, têm sido ingredientes preferenciais do escritor étnico. Tal como escreveu Ilan Stavans no ensaio “Vida no Hífen”: “Cultura e identidade são um desfile de símbolos anacrónicos, abstractos maiores do que a vida, não propriamente um grupo de crenças e valores, mas sim um grupo de estratégias através das quais nos organizamos e tentamos trazer algum sentido às nossas experiências, uma complexa e simultaneamente rígida construção num Estado que está num fluxo perpétuo.”

Mais do que qualquer outro cultivador da palavra, o que se identifica e o classificam de étnico, que é americano por nascimento ou por naturalização, por vezes tendo por primeira língua outra, e não a língua oficial, o inglês, tendo que equilibrar duas culturas, tenta dar o sentido possível à sociedade multicultural narrando através da ficção e da poesia as situações complicadas que as suas comunidades enfrentam quotidianamente.  O escritor étnico tem-se debruçado e vivido, particularmente durante as últimas décadas, e por vezes em ambientes hostis como os últimos quatro anos, com estes “símbolos anacrónicos”.

Aparecendo na ribalta nos anos 60, foi nessa conturbada e efervescente década que o escritor étnico americano começou a sua odisseia pela literatura do chamado mainstream americano. Mercê de um renascimento nos ideiais americanos de igualdade e liberdade para todos, o escritor étnico viu-se, tal como toda a América étnica, especialmente a não europeia, a renunciar-se.  O processo foi político e económico, aliado ao desejo, de largos anos, de clamar que também se é gente e se tem direito a um lugar no patamar das letras e da sociedade americana.  Foi acima de tudo um acto cultural, uma manifestação necessária para o seu processo imaginativo e a expressão individual e coletiva.

Nunca é de mais insistir-se, mesmo depois da literatura étnica ter encontrado o seu lugar no mundo americano, que as conexões que o escritor étnico dos Estados Unidos tem com o passado não são apenas sinais de nostalgia, ou um mero exercício de saudade, ou uma regressão a um tempo ou a um lugar.  Mais do que silhuetas do passado, a escrita dos homens e das mulheres das letras étnicas nos Estados Unidos são ligações com um tempo que lhes serve para analisar o presente e perspetivar o futuro. Estes autores estão conscientes que o verdadeiro debate americano está circunscrito pelas rédeas de um poder com pouca imaginação para o multiculturalismo. Estão conscientes, e ainda bem, que o seu passado, através da criação literária, é o clamor necessário e urgente para um outro futuro para a sua etnia e para a sociedade em geral. Tal como afirmou o académico afro-americano Molefi Kete Asante: “A verdadeira divisão no multiculturalismo existe entre os que querem controlar a hegemonia eurocêntrica e os que acreditam no pluralismo cultural sem hierarquias.”

Poder-se-á dizer, sem qualquer hesitação, que as múltiplas vozes dos escritores contemporâneos étnicos dos Estados Unidos, nas quais se incluem as dos açor-descendentes, são chamadas de atenção para o autêntico mundo americano, onde o passado se interligue com o presente e o elemento da família, vinda de outras latitudes e com outros sons, tem uma importância vital. Tal como escreveu o escritor mexicano-americano Richard Rodriguez na novela Ária, a família é a ligação com o passado, a ressonância essencial que o escritor étnico necessita para trazer algum sentido ao presente: “A linguagem da família, o som da minha família. As vozes dos meus pais, dos meus irmãos. As vozes deles insistindo: Tu pertences aqui. Nós somos elementos da mesma família. Parentes. Temos afetos especiais de uns para os outros. Ouve!”

A vasta maioria da escrita étnica nos Estados Unidos é feita por autores que têm escutado as vozes do passado, incluindo os que têm raízes em Portugal. E essa auscultação tem sido executada no sentido de quem procura uma cultura comum ao construir a sua própria identidade, algo que cada ser humano tem direito a cultivar consoante o lugar de onde veio.

No mundo do pós-modernismo e dos exacerbados consumismos, a sociedade norte-americana só poderá entender-se quando atravessar, sem ambiguidades e preconceitos, o mundo da sua literatura étnica. Poderão não fazer parte de alguns cânones literários, porque os donos da academia ainda não o consentiram, mas é nesta literatura, toda ela e não de apenas alguns escolhidos, que reside a compreensão da verdadeira América, aquele país megalómano com uma cultura cheia de diversidade que vai muito além das hambúrgueres, das MTV, dos cachorros-quentes, do beisebol, da Disneylândia, e das produções hollywoodescas. A beleza americana reside no seu multiculturalismo. É nesse mundo, e apenas nesse mundo multicultural, que os emigrantes portugueses e os seus descendentes têm o seu lugar.