A democracia nunca é uma conquista final. É um apelo a um esforço interminável.
John F. Kennedy, 35º Presidente dos EUA

A América foi às urnas. O povo falou e elegeu Joe Biden presidente e Kamala Harris vice-presidente dos Estados Unidos da América. Não existem dúvidas!  Todas as projeções indicam, claramente, que mesmo com recontagens, Donald Trumpo foi derrotado. Apesar dos factos, o atual inquilino da Casa Branca, que muito cedo nesta campanha tinha lançado desconfianças sobre o processo eleitoral americano, dizendo, repetidamente, que só perderia se o sistema fosse falsificado (as falsas incriminações que todos os ditadores têm usado desde sempre), continua através dos seus acólitos, e nos seus breves tweets diários, com acusações infundadas que lançam o caos e ofuscam a democracia americana. Pior do que os acometimentos dos seus acólitos e do chefe-assaltante, é o silêncio e a inibição dos líderes do Partido Republicano. É mais do que óbvio que nas eleições de 2020 nos Estados Unidos, os assaltos ao processo eleitoral não vieram nem da Rússia, nem da China, nem de outras forças ditatoriais, mas sim da liderança do Partido Republicano.

Se é verdade que ainda se contam votos em alguns estados, não é menos verdade que Joe Biden já ultrapassou Donald Trump no voto popular por cerca de cinco milhões de votos. No colégio eleitoral, que elege o presidente a 14 de dezembro, Biden já ultrapassou os necessários 270 delegados, contando con 279 em algumas projeções e 290 em outras. Em estados que haviam sido ganhos por Trump em 2016, tal como Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, apesar das percentagens serem muito próximas, Biden ganhou por mais votos do que Trump havia ganho a Hillary Clinton em 2016, a qual aceitou a derrota com dignidade. O comportamento da liderança do Partido Republicano lembra as crianças mimadas que não querem partilhar os seus brinquedos. Aliás, a palavra partilha, apesar do discurso, dito cristão, da liderança conservadora, não faz parte do seu vocabulário.

Donald Trump tem todo o direito de questionar o processo eleitoral, de inquirir sobre os votos e exigir recontagens, dizem os líderes do Partido Republicano no Senado e na Câmara dos Representantes, enquanto, simultaneamente, aceitam a veracidade dos mesmos boletins no que concerne aos congressistas e senadores conservadores eleitos nesses estados ou distritos. Aliás, a liderança do Partido Republicano seria muito mais coesa se aceitasse, sem obstáculos, o resultado das eleições e começasse o processo necessário para distanciar-se do narcisista e, pelo que parece, economicamente falhado magnata de Nova Iorque. É que se olharmos com alguma objetividade para as eleições americanas de 2020, este não foi um ato eleitoral que rejeitou o conservadorismo. Foi sim, uma repudiação a Donald Trump. Os democratas, por enquanto, ainda não ganharam o Senado e perderam meia dúzia de lugares na Câmara dos Representantes. Mais, a nível de eleições estaduais, o Partido Republicano manteve a sua supremacia. É mais do que óbvio que o eleitorado americano quis divorciar-se de Donald Trump. A liderança do Partido Republicano deveria fazer o mesmo. O divórcio é algo que Donald Trump entende muito bem.

A falta de coluna vertebral da liderança do Partido Republicano é assustadora e prejudicial para o processo democrático. Lembremos que em 2016, mesmo com Donald Trump à frente, por percentagens muito dentro da margem de erro, e com menos votos populares, Hillary Clinton, fez, em menos de 24 horas, o chamado “discurso de concessão” e na madrugada da quarta-feira, após as eleições, Barack Obama (que tinha feito campanha feroz contra Donald Trump) telefonou para o presidente-eleito convidando-o  a visitar a Casa Branca, a fim de dar início ao processo de uma transição pacífica, um dos alicerces das democracias. Aliás, um dos gritos dos republicanos em 2016 baseou-se precisamente na recusa de Hillary Clinton em fazer o dito discurso na noite das eleições, fazendo-o, como se sabe, na manhã seguinte. Passadas quase duas semanas, Donald Trump ainda não admitiu a derrota e comporta-se como um ditador que não abdica do poder. O eco de irregularidades no processo eleitoral, sem provas, rejeitado por vários tribunais, indica-nos que tal como profetizaram alguns analistas, o magnata de Nova Iorque instalou-se na Casa Branca para ficar, e a liderança do Partido Republicano, pelo menos momentaneamente, apoia esse processo antidemocrático.

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Mais, é bom relembrarmos que ao longo dos últimos dois anos, a Câmara dos Representantes, liderada pelo Partido Democrático, passou várias peças legislativas, apelando para um maior investimento no processo eleitoral, e todas essas tentativas acabaram por morrer no Senado, controlado pelos republicanos, com o argumento de que o processo eleitoral americano estava seguro e não precisava de reforço, o eufemismo conservador para: quanto menos pessoas votarem, mais probabilidades temos de ganhar as eleições. Mais, a acusação republicana de que os democratas movimentaram o processo de destituição de Donald Trump para invalidar o ato eleitoral de 2016 é um absurdo. A destituição mostrou-nos, com evidências concretas, que o quadragésimo-quinto presidente dos EUA cometeu um crime perante a Constituição americana: abuso de poder e só não foi destituído oficialmente porque o Senado lhe fez esse favor.

Para quem vive nos Estados Unidos, ou quem está atento à sociedade norte-americana nos Açores, relembrar-se-á, sem muito esforço, que há anos que o Partido Republicano tem acreditado nas teorias conspiratórias mais absurdas, demonizando, à semelhança dos países autocráticos e ditatoriais, os seus opositores políticos e obstruindo a governação do país. Lembremos a ostracização e os insultos racistas contra Barack Obama, que lançaram Donald Trump na política nacional e foram, indiretamente (em alguns casos diretamente), abençoados pela liderança republicana. Há décadas que o Partido Republicano trabalha, arduamente, para tornar o processo eleitoral mais difícil e este ano não foi exceção. A liderança republicana sabia bem que Donald Trump estava em decréscimo na sua popularidade. Daí que, quando a tática de supressão do voto falhou, restassem aos republicanos duas opções: ou, como adultos, aceitavam a derrota, lambiam as feridas e reconstruiam o seu partido, ou, como crianças mimadas, bradavam aos céus o mito das irregularidades eleitorais. Infelizmente, optaram, pelo menos momentaneamente, pela segunda opção. Seria bom relembrarmos a célebre frase de John Adams: “Lembre-se, a democracia nunca dura muito tempo. Logo se desperdiça, se esgota, e se mata. Nunca houve uma democracia que não cometesse suicídio.

Daí que a democracia americana tem vivido, como todos os processos democráticos em todo o mundo, momentos auspiciosos e momentos dolorosos, como nos alertou Adams. Este é um dos momentos mais sombrios para os Estados Unidos. Já se esperava que o narcisismo de Donald Trump não o permitiria admitir a derrota. Porém, não se pensava que os líderes do Partido Republicano fossem tão subservientes.  Os processos democráticos só sobrevivem porque os perdedores aceitam (alguns com relutância) as derrotas eleitorais, a escolha do povo, que é soberano. As dezenas de líderes mundiais, das mais diversas democracias, compreendem essa realidade, aceitaram o processo democrático e saudaram o presidente-eleito. Os dirigentes de todas as fações do Partido Democrático também o fizeram, assim como líderes das mais variadas indústrias e organizações nacionais e internacionais. Apenas a liderança do Partido Republicano, incerta sobre que futuro a espera numa era pós-Trump, e receosa da ira tweetiana do seu perdedor e do que a sua família e menos de meia-dúzia de lacaios semeará na comunicação social, recusa aceitar a realidade.

Pena que os conservadores americanos, que gerem o Partido Republicano, insistam em levar o país, e o mundo, para um espaço tão maleficente, um sítio obscuro e temerário, criando ainda mais fragmentação numa sociedade, infelizmente, excessivamente dividida. A América merece melhor. O mundo precisa de uma democracia americana robusta e coesa.