A persistência das desigualdades sociais na saúde é um facto sobejamente comprovado, dado que pessoas com maior literacia, melhor estatuto profissional ou com maiores rendimentos têm uma morbilidade mais baixa e uma maior esperança de vida. Portugal, no quadro da OCDE, é, aliás, apresentado como um dos países com maiores desigualdades sociais neste domínio.
Os níveis de pobreza e as condições de vida são, por isso, fatores determinantes para a qualidade de saúde de uma população. A pandemia Covid-19 veio demonstrar esta correlação. Recentemente, Richard Horton, editor-chefe da prestigiosa revista científica The Lancet, vem defender que existe, por um lado, o vírus que causa a doença Covid-19 e, por outro, uma série de doenças não transmissíveis. Estes dois elementos interagem, ampliando e exacerbando os efeitos da pandemia num contexto social e ambiental caracterizado por profundas desigualdades sociais; portanto, na sua perspetiva, devemos considerar a Covid-19 não como uma pandemia, mas como uma sindemia.
Não é uma simples mudança de terminologia, mas uma oportunidade para entender a crise de saúde que vivemos, a partir de um quadro conceptual mais amplo, onde se evidencia que não são só os comportamentos os únicos fatores de risco, mas que outros fatores não-comportamentais, como sejam as deficitárias condições de habitação e de trabalho, têm forte impacto na prevalência dos surtos de Covid em contextos sociais mais desfavorecidos. Foi do domínio público que a pandemia de Covid-19 afetou especialmente os grupos mais desfavorecidos e mais pobres, e as gerações em idade ativa foram as que sofreram maior impacto da crise económica que emergiu espoletada por este vírus. A Covid-19 revelou uma verdade pré-existente mas até então ignorada por muitos: o que acontece num determinado grupo populacional tem efeitos em toda a sociedade. Travar o vírus só tem sido possível através de uma ação concertada.
Ora, esta evidência deve ser vista como um alerta a não desvalorizar, abrindo-se um caminho para se encontrarem soluções e abordagens mais adequadas para as políticas de saúde em Portugal. Isto, numa lógica em que as políticas de saúde devem estar presentes em todas as políticas públicas e sociais.
Escrevo estas linhas porque temo que, uma vez vacinada a população, ultrapassada a Covid-19 e virada a página da pandemia, se retome uma lógica de combate às desigualdades sociais sectorial, com políticas públicas que não falam umas com as outras, que se esqueçam, novamente, que a saúde é interministerial, transversal a todos os setores da sociedade. O alerta que aqui vos deixo podia ter muitos rostos, aqueles que me olham diariamente na minha prática profissional de assistente social numa Unidade de Emergência Social da cidade de Lisboa, mas são rostos silenciosos, sem poder para serem ouvidos. Permitam-me, assim, que lhes possa dar voz. Gostaria, pois, de enfatizar e evidenciar o confronto diário com pessoas com níveis de saúde muito debilitados, que, se não forem ultrapassados, condicionam determinantemente qualquer plano de integração e inclusão social que se possa ambicionar. A perpetuação da pobreza é, também, a perpetuação de doenças. Muitas delas transgeracionais: alcoolismo, toxicodependência, diabetes e doença mental marcam histórias de gerações que me chegam ao atendimento social. A combinação das desigualdades sociais com a problemática da saúde a elas associadas é uma batalha imperativa.
Esta pandemia também abriu uma outra janela, ao dar visibilidade pública à temática da saúde mental: o isolamento, o medo da própria pandemia, o difícil acesso aos cuidados de saúde mental (já escassos antes da pandemia), o desespero pela perda de rendimentos, a nuvem negra de uma forte crise económica começou a rasgar o silêncio que envolveu, até então, as questões da saúde mental, funcionando como “igualizador” social. Afinal, a doença mental pode bater à porta de todos nós. Bem sei que a doença mental não escolhe classes sociais, mas as principais fundações da saúde mental estabelecem-se numa fase inicial da vida e são mais tarde apoiados por cuidados positivos, elevado capital social, uma estabilidade laboral e a sensação de que “as coisas fazem sentido”. Ora, as precárias condições de vida durante a infância e adolescência, os conflitos pessoais graves no seio familiar, a falta de condições da habitação, condicionam, irremediavelmente, a saúde mental de que cada adulto virá a ter.
Sem a implementação efetiva, por exemplo, de redes de saúde mental a nível das comunidades e na prestação de cuidados de boa qualidade e socialmente inclusivos, repetiremos erros invariavelmente. No geral, os hospitais psiquiátricos perderam o seu papel central nos sistemas de cuidados, mas os centros de saúde não incorporaram esta valência.
As depressões têm um impacto dramático na economia e na sociedade. O transtorno depressivo é a maior causa de perda de produtividade na União Europeia. O custo da depressão corresponde a 1 % da economia de toda a Europa, conforme mencionado no documento “Linhas de Ação Estratégica para a Saúde Mental e Bem-estar da União Europeia”.
As desigualdades sociais continuaram a formar “bairros sociais”, em sentido lato e figurativo, escondidos na opulência das fachadas das sociedades desenvolvidas. Pessoas, que geração após geração, são fechadas em ciclos de pobreza financeira, educacional e de saúde. A herança de um pobre não é só viver numa habitação social, o seu património transgeracional consiste na passagem de comportamento e de dependências (alcoolismo, toxicodependência), de uma apatia e consequente atitude de desistência com que diariamente me confronto no meu local de trabalho. Estilhaços de uma saúde mental pouco nutrida. Sim, a fome não se limita à falta de alimentos. A subnutrição da saúde em geral e da saúde mental em particular, em Portugal, é um problema crónico. Existem estratégias contra o extremo da fome e da pobreza, mas não existe uma ação local e concertada para a promoção de melhores condições de acesso à saúde em geral e, em particular, à saúde mental, que promovam o bem-estar da população.
A história de saúde mental em Portugal é cíclica e feita de poucos avanços e de muitos recuos, muito por falta de implementação de respostas nos territórios. O primeiro problema está ligado à pouca participação dos doentes nos seus projetos de vida e ao estigma que a esta doença está associado, e esse não se resolve por decreto, é fundamental o envolvimento de vários atores sociais.
Faço votos para que, em 2021, a sociedade não se esqueça que estamos umbilicalmente interligados: não cuidar da saúde mental tem e terá consequências que nos afetarão a todos. “Nenhum homem é uma ilha.”