Este país tem umas traseiras que nunca são bonitas de ver. Quando nos aparecem à vista sem disfarces é que percebemos como tantas vezes preferimos viver na terrível ilusão do país mais-que-perfeito. Um país bonitinho mas que não é o nosso, ou não é o de todos nós.

E não, não estou a referir-me à estrada que caiu para dentro de uma pedreira em Borba, mas já lá irei. Estou a falar da família que morreu em Fermentões, Sabrosa, lá nos confins do Douro. Não apenas por ter morrido intoxicada por monóxido de carbono, quase sempre uma morte de pobres que recorrem a métodos primitivos para se aquecerem, pois infelizmente todos os anos morrem umas dezenas de portugueses assim. Mas por ter morrido na casa em que morreu, sinal de uma vida vivida como nem sabemos que pode ser vivida, e pelas razões que morreu.

Fait-divers? Uma tragédia como tantas outras? Sim, porque há outras iguais. Não, porque houve nas imagens daquele casebre, na história daquela vida, o vislumbre do Portugal para que preferimos não olhar, ou que tendemos a esquecer que existe (e sim, estou a escrever na primeira pessoa do plural, não me estou a excluir).

Caseiros numa quinta do Douro, o casal tinha erguido pouco a pouco aquelas paredes para sua habitação, trazendo tijolos e areia, acomodando-se numas divisões “minúsculas, cheias de remendos”. Eram “muito humildes”, contaram os vizinhos, eufemismo para muito pobres, e por isso mesmo, nos vários textos que fui lendo, o que mais me chocou acabou por ser a descrição da demora no acesso a um bem essencial – a energia eléctrica. Porquê? Porque António e Helena Vieira não tinham dinheiro. Só agora é que tinham “conseguido acabar de pagar a baixada da eletricidade, com o dinheiro das vindimas”, e logo aconteceu a tragédia, contou um dos vizinhos. Só agora, tarde demais: a electricidade só deveria chegar esta semana.

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Foi assim que a morte chegou – porque usavam um gerador a gasolina para terem luz. Tudo porque não houvera dinheiro mais cedo para a tal “baixada da electricidade”.

Tudo isto é uma miséria, e não só pela miséria em que aquela família vivia. É uma miséria porque é difícil compreender como o acesso a um serviço público de primeira necessidade, como é a electricidade, tem um custo que pode ser proibitivo. É uma miséria quando se pensa que destas “pequenas” coisas não se ocupam os nossos ministros, nem os nossos deputados, os mesmos que andam a fazer uma festa para mudarmos os contadores para uma potência que não permite ligar ao mesmo tempo o ferro de engomar, o forno e a máquina de lavar roupa, mas permite ter o bónus de um micro-descida na taxa do IVA. É ainda uma miséria se pensarmos que a distribuição de electricidade em baixa tensão é um monopólio natural, actualmente concedido à EDP Distribuição, a tal que se faz cobrar bem por cada “baixada”, quando em mercados realmente liberalizados, como o das telecomunicações, nenhuma das empresas cobra aos clientes as ligações pois existe concorrência (mas mesmo assim há quem continue a dizer mal da concorrência e a preferir monopólios à antiga).

Mas Fermentões está nas traseiras do país, e o casebre daquela família estava nas traseiras de Fermentões. Fazem parte daquele Portugal invisível de que só ouvimos falar quando há tragédias assim e quando descobrimos que nem tudo é lustre, que nem tudo se disfarça com o verniz passado pelos nossos irritantes optimistas.

Aqueles cinco portugueses morreram por um erro que cometeram, mas que cometeram porque eram pobres e porque tiveram dificuldade em aceder a um serviço público essencial. Aqueles cinco portugueses recordaram-nos, como nos recordaram todos os que perdemos nos incêndios do ano passado, ou os que perdemos também nesse Verão de 2017 debaixo de uma árvore na Senhora do Monte no Funchal, que este nosso país é frágil, desigual, cheio de omissões, esquecimentos e desleixos.

Porque só omissões e desleixos podem, na melhor das hipóteses, explicar a sucessão de encolher de ombros que parece ter permitido que aquela estrada entre Borba e Vila Viçosa continuasse aberta à circulação.

Há quase 30 anos que se sabia que aquelas pedreiras que ladeavam a estrada não cumpriam a distância mínima de segurança (30 metros), mas como a situação era pré-existente não se impediu o seu licenciamento e mais anos de laboração. Fez-se alguma coisa para mitigar os riscos? O que se fez era tido por suficiente? Quem se responsabilizou?

É que, sabemos agora, desde pelo menos 2014 que os empresários das pedreiras queriam fechar aquela estrada. Só que fazê-lo implicava investir noutros acessos. Porque foi que ninguém, naquelas autarquias, sobretudo na de Borba, quis seguir o seu apelo para a “eliminação do enorme factor de risco da via”? E porque não agiu a administração central, que estava a par das diligências dos empresários?

Mais: das muitas centenas (milhares?) de quilómetros de estradas nacionais desclassificadas e transferidas para a competência dos municípios nas últimas décadas, quantas tiveram a manutenção devida? E receberam os municípios as verbas para esses trabalhos? Quantos mais taludes podem vir por aí abaixo se voltar a chover intensamente?

Estou a alinhar estas perguntas e estou a recordar-me daquela segunda-feira de 2001 em que o país acordou atordoado com a tragédia de Entre-os-Rios. Estou a lembrar-me de como chovia muito, de como tantas perguntas ficaram por responder, de como poucos acabariam por ser os acusados de negligência, e apenas técnicos, e de como foram todos absolvidos. Sobretudo recordo-me do que então senti e escrevi, de como nessa altura olhei para o meu país com a tristeza de quem percebe que sob a capa fina da “modernidade” (mal acabáramos de celebrar a Expo-98) se escondia uma enorme fragilidade. E citava palavras que António Barreto escrevera poucas semanas antes, precisamente a propósito dessa fragilidade do seu, e meu, pobre país que “é nesta altura que revelas a desigualdade e que mais massacras os pobres.”

Passaram quase duas décadas, vieram todos os IP’s e todas as PPP’s, passou a Expo mas ficou a Web Summit, são outros os irritantes optimistas (mesmo os que nos surgem mais compungidos nestas ocasiões), mas é espantoso como basta abrir-se um pequeno rasgão na fina película que recobre a nossa ilusão para nos confrontarmos, uma e outra vez, com as tais traseiras pouco agradáveis de ver desta encenação a que chamamos (ou chamam por nós) “um país que cresce mais do que a média da União Europeia”. E para podermos voltar a escrever, palavra por palavra, o que escrevi nesses dias tristes de 2001.

Não nos iludamos. A “bolha” de Lisboa (onde rendimento per capita é superior à média europeia e quase o dobro do registado nas regiões de Sabrosa e de Borba) não é o país, e mesmo nela as fragilidades são enormes, como percebemos sempre que, por exemplo, chove demais ou estamos dependentes do serviço ferroviário. O país “está” na Europa, mas não se tornou rico e “europeu” apenas por isso ou por obra e graça dos muitos fundos que recebeu.

E o pior é as tantas e tão teimosas misérias que persistem nessas traseiras nada vistosas do Portugal “que está na moda” são também as misérias dos que não têm voz nem se fazem ouvir no Terreiro do Paço. Por isso só damos por eles nestas alturas. Quando morrem.