Qual é o maior evento futebolístico da história? O Mundial. Qual a selecção mais vitoriosa de sempre? A brasileira. Esse estatuto só começa a ganhar forma em 1958, na Suécia, onde o Brasil ganha o primeiro Mundial, na sua sexta edição. Com um miúdo de 17 anos chamado Pelé. Que voltaria a coroar-se rei em 1962 e 1970. Sem ele, o Brasil conquistaria as edições de 1994 e 2002. Daí aquela rima do “todo mundo tenta, só o Brasil é penta”.
Além desse penta, o Brasil é também o único país com presenças em todos os 21 Mundiais, desde 1930 até 2018. Na primeira edição, organizada no Uruguai, a selecção brasileira não passa da fase de grupos, com uma derrota a abrir (2-1 da Jugoslávia) e uma vitória a fechar (4-0 à Bolívia). Atentemos à estreia, no dia 14 de Julho. O Brasil joga com este 11: Joel; Itália e Brilhante; Fausto, Fernando e Hermógenes; Nilo, Araken, Poly, Preguinho e Teóphilo. Oookay, e agora? O Fernando do meio-campo é um tal Fernando Rubens Pasi Guidicelli. Ooookay, e agora? Este tal Fernando Rubens Pasi Guidicelli tem história feita em Portugal. Ooook… quê? É isso mesmo, Fernando Rubens Pasi Guidicelli é Guidicelli nos almanaques de Benfica e Sporting. E porquê dos dois?
Calma aí, já lá vamos. Antes, damos uma volta sobre a carreira deste senhor. Nascido em 1906 no Rio de Janeiro e filho de pais italianos (daí o Guidicelli), forma-se no América, então um dos melhores clubes cariocas, até se transferir para o Fluminense em 1927. Durante quatro anos, faz 90 jogos e ganha a convocatória para o Mundial-30. É titular nos tais dois jogos, com Jugoslávia e Bolívia – os únicos dele pela selecção. Como só dois? Isto tudo porque agride um árbitro (Leandro Carnaval, de seu nome) durante um particular com o Fluminense em 1931 e escapa-se para a Europa, como jogador do Vasco da Gama. Nunca mais voltaria a jogar no Brasil e nunca mais seria chamado para a selecção. Andaria numa roda-viva pela Europa.
Aos italianos do Torino (1931/33), seguem-se os suíços do Young Boys (1933-34) e os franceses do Bordéus (1934-35). No Verão de 1935, Giudicelli vai ao Brasil de férias para convencer os amigos Jaguaré (guarda-redes) e Vianinha (defesa) a jogarem em Itália. O navio faz escala em Lisboa com os três brasileiros e não sai mais. Motivo? A erupção da Segunda Guerra Italo-Etíope (o sinistro Mussolini invade a Abissínia, actual Etiópia). Fechadas as portas em Itália, o trio assina contrato com o Sporting.
Dos três, o mais conhecido é Giudicelli (precisamente pelos dois jogos no Mundial-30) e também aquele com menos jogos de leão ao peito. Só um (2-1 para o Benfica), nas Amoreiras, a 17 Novembro 1935, para o campeonato regional de Lisboa. Nesse 11, também constam os nomes de Jaguaré e Vianinha. Estes dois fariam os 90 minutos, já Giudicelli é expulso pelo árbitro Américo Gomes aos 73′, por escaramuças com o benfiquista Cardoso. O filme é de terror, com salpicos de preconceito. O trio de brasileiro é apupado pelo público desde o primeiro minuto. Parece coisa de terceiro mundo. E é. Cada toque na bola suscita um burburinho anormal das bancadas. Quando soa o apito para o intervalo, o trio brasileiro volta a ser apupado. Não há direito, é uma pobreza de espírito alarmante.
É bom de ver que o mais assobiado é o guarda-redes Jaguaré. Cada defesa equivale a uma série infinita de insultos. E, atenção, Jaguaré é um artista por natureza. O futebol é, para ele, um circo. E bastava vê-lo entrar em campo para perceber esse lado caricato. Porque, corre a lenda, Jaguaré dorme sempre até dez minutos antes do início do jogo e tem de colocar a cabeça debaixo do chuveiro de água fria para entrar fresco. As suas histórias dentro do campo também são demais. Uma das mais famosas é com o Benfica, num penálti de Aníbal José. Antes da marcação, Jaguaré cospe na bola. O gesto confunde visivelmente o benfiquista e a bola sai por cima. O árbitro, sabe-se lá porque carga de água, manda repetir o castigo. Jaguaré repete então o ritual e Aníbal José atira, desta vez, à baliza. Jaguaré encaixa a bola. E fá-la rodar com o indicador. O futebol é um circo, bem dizíamos. A caminho dos balneários, há mosquitos por cordas entre benfiquistas e sportinguistas.
De volta ao tal dérbi de 1935, Guidicelli faz falta sobre Cardoso e o caldo está entornado. Os dois jogadores envolvem-se em cenas de pugilato e todos os outros idem idem. A polícia, aspas aspas, tem de intervir com energia. O sururu ainda demora uns quantos minutos, até porque o público entra em campo e tira desforço desde, daquele e ainda do aqueloutro. É um forrobodó inesquecível. Retomado o jogo, o Benfica confirma a vitória por 2-1 e Guidicelli nunca mais volta a jogar pelo Sporting. Desvincula-se ainda nessa época, a tempo de ser o primeiro brasileiro a jogar no Real Madrid, onde também só faz um jogo (6-0 ao Racing), antes de voltar à França. Retira-se do futebol em 1937. Deambula por Portugal e Espanha antes de se fixar no Rio de Janeiro, a sua casa de sempre, até ao seu último dia a 28 Dezembro 1968.