Petter Hörnfeldt é comandante instrutor e piloto da aviação comercial com mais de 10000 horas de voo.  Além disso tem um excelente programa Mentour Pilot sobre aviação cujos conteúdos estão disponíveis  no Facebook e no YouTube sobre toda a tecnologia da aviação: requisitos da tripulação de pilotagem e de  cabine, história da aviação, logística de aeroportos, análise de acidentes e muito mais. Inclusivamente  chegou a oferecer um curso de pilotagem de um Boeing 737 online. Alguns dos seus colegas pilotos já  comentaram que saíram de apuros graças às análises de procedimentos que são relatadas no seu  programa.

Duas previsões

Dos assuntos que Hörnfeldt já abordou, existem dois que são particularmente interessantes para Portugal e  especificamente no campo das previsões e evolução do mercado da aviação comercial e das justificações  que estão na base dos milhares de milhões que se pretende “investir” num novo aeroporto.

Uma das  previsões surgiu nos anos de 1960, em que as companhias aéreas previam que no futuro, todos os voos  intercontinentais seriam supersónicos. Um consórcio anglo-francês quis ser pioneiro na aviação comercial  supersónica e dessa vontade nasceu o Concorde, uma fabulosa máquina de tecnologia impensável, mas  vítima de circunstâncias fatais sucessivas num mesmo dia. Mas antes do trágico acidente de Paris a  continuidade do Concorde já estava a ser ameaçada e 60 anos depois sabemos que a aviação comercial já  não se sentia atraída pelos voos supersónicos pois exigiam uma tecnologia cara e muito específica, bem  como manutenção e operação caras e consequentemente conduziam a preços de venda de viagens  proibitivos.

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A outra previsão relacionava-se com a logística dos voos comerciais. Previam-se grandes  aeronaves e grandes aeroportos capazes de as receber. A perspetiva da época dos anos 60 a 80 era que  seriam construídos grandes aeroportos que serviriam de plataforma logística de receção de aeronaves  mais pequenas que concentrariam passageiros de várias origens para depois serem transportados às  centenas em grande aeronaves para o mesmo destino intercontinental. Esta previsão motivou primeiro a  Boeing e depois a Airbus por questões de concorrência, para projetos de aeronaves capazes de  transportarem entre 500 a 900 passageiros. O Boeing 747 já estava a ser desenvolvido desde 1960 e foi  apresentado ao público em 1970 e revelou-se ser uma ferramenta versátil pois a sua conceção permitia o  transporte de passageiros, mas também o transporte de mercadorias na versão Cargo. Descontente com  a inexistência de uma aeronave que pudesse competir com o Boeing 747, a Airbus encetou o projeto do  Airbus A380 em 1980 e foi apresentado ao público em 2005 (25 anos depois!). Ambas as aeronaves com  velocidades subsónicas (Mach 0,89).

Rentabilidade e concorrência  

Coisa que as construtoras de aviões levam muito a sério é a rentabilidade do seu investimento e a  capacidade de competirem e captarem o interesse das companhias de aviação comercial e no caso militar,  oferecerem produtos em conformidade com os requisitos das Forças Armadas. Ora o Airbus A380 só é  rentável se todos os lugares estiverem comprados, o que para as companhias de aviação era um problema e levou a que a aquisição deste tipo de aeronave foi progressivamente abandonada. No caso do Airbus  A380 a sua produção só não encerrou ainda porque a Emirates tem sido e mantém-se o seu maior cliente.  Calhou o Dubai ter a localização geográfica favorável para que se constituir como a plataforma logística  para voos intercontinentais, pensada dezenas de anos atrás e consegue tirar rentabilidade dos seus A380.

Outro aspeto que ditou o fim destas grandes máquinas foi a norma de segurança que ditava que uma  aeronave de grande porte de transporte de passageiros só poderia fazer voos intercontinentais se  estivesse habilitada para voar com metade dos seus motores. Ora esta norma obrigava a aeronaves com  quatro motores, grandes consumidores de combustível para transporte de centenas de passageiros,  bagagem e mercadorias. O lobby das companhias aéreas e das construtoras veio progressivamente a  atenuar esta norma com base na evolução tecnológica dos motores e outros requisitos de segurança e  operacionais que se abordarão mais adiante.

Atualmente o Boeing 767 e o 777 ou o Airbus A330 por  exemplo, de dois motores e mais económicos, com capacidade inferior a 400 passageiros, estão  autorizados a realizarem voos intercontinentais. Salvou-se o Boeing 747 Cargo por apenas transportar  mercadoria, graças à visão dos seus projetistas, que o conceberam logo de início para as duas  funcionalidades. A Airbus só 14 anos depois da apresentação do Boeing 747 é que conseguiu apresentar  uma aeronave na versão de transporte de carga (o Beluga).

Não resisto em comentar que a vantagem competitiva sistemática dos EUA está sempre à frente da  “União” Europeia em que várias nações defendem os seus interesses, ao passo que nos EUA, por serem uma só nação do Alasca à Flórida, resulta uma capacidade de decisão muito mais rápida (para o bem e  para o mal) em problemas de grande escala.

O fator humano

Outro fator que veio baralhar as previsões iniciais foi aquele fator que as folhas de Excel ou outros  programas de modelos preditivos não conseguem contabilizar: o fator humano. Por vários motivos, a  partir de uma determinada época e enquanto se desenvolvia o projeto do Airbus A380, os passageiros  passaram a procurar mais horários. Não estavam interessados em voos em grandes aeronaves com um ou  dois horários por dia (e eventualmente nem todos os dias) mas sim no transporte do ponto A num  continente para um ponto B noutro continente com flexibilidade de horários. Uma empresa de sucesso  está sempre atenta aos requisitos dos clientes e o que não fizer para os captar e fidelizar, outros o farão.  Por isso as construtoras e as companhias de aviação estavam perante um dilema: ou “matavam” as  grandes aeronaves que para que fossem rentáveis tinham que voar com menos horários para assegurar a  venda de todos os lugares, ou as construtoras apresentavam aeronaves com capacidade que permitisse  rentabilidade com menos lugares e em consequência, mais horários e maior rentabilidade.

Esta narrativa serve para ilustrar como construtoras e companhias aéreas dependem da capacidade de  previsão dos mercados para avançarem com os seus projetos e investimentos pois que a sua sobrevivência  depende da precisão dos seus modelos preditivos. Porém, como se pode constatar o desenvolvimento e  concretização dos seus projetos leva pelo menos mais de uma dezena de anos e por vezes, com base nos  dados disponíveis na época, optam pela pior decisão, o que só se pode constatar muito tempo depois porque, entretanto,surgem sempre fatores de evolução e tendência devido ao fator humano e outros que  são impossíveis de antever e levam a milhares de milhões de prejuízo não obstante todas as precauções  com a sua saúde financeira.

NAL – risco público, resgate privado 

A Comissão Técnica Independente que analisou e propôs a solução do Campo de Tiro de Alcochete para a  localização do Novo Aeroporto de Lisboa certamente se baseou em pressupostos agora muito válidos, mas  também sujeitos aos mesmos fatores de imprevisibilidade que ditarão o sucesso ou o fracasso da  construção do novo aeroporto, face à duração do projeto e respetivas infraestruturas. Mas com duas grandes diferenças: a primeira é que as construtoras e companhias de aviação “apostam” o seu dinheiro.  No caso de Portugal, parco em recursos financeiros, é o dinheiro de nós todos, cidadãos e contribuintes  que é “apostado”. E se os pressupostos falharem, é o dinheiro de nós todos que é desbaratado e não é  coisa pouca: para já a primeira “ficha” vale 8 (oito!) mil milhões de euros. Por isto a prudência na utilização  do dinheiro público é primordial. A segunda, é que no setor da aviação comercial (construtoras e  companhias de aviação) a responsabilidade das decisões tem nomes de pessoas que terão que prestar  contas e justificações e assumir a responsabilidade dos seus atos. No caso do dinheiro público, quase  nunca existe quem seja responsabilizado.

Assim, não se compreende que a Assembleia Municipal de Lisboa tenha aprovado (por unanimidade  pasme-se!) o início imediato das obras do novo aeroporto e ainda que seja constituído um “pulmão verde” nos terrenos do aeroporto Humberto Delgado, quando me parece que já toda a gente sabe que esses  terrenos (se algum dia deixarem de servir de aeroporto) estão na mira (e eventualmente prometidos) de  promotores imobiliários. E não nos esqueçamos que inclusivamente por razões de segurança, os países  europeus com recursos financeiros para isso, apesar de construírem aeroportos novos nos arredores das suas cidades principais (essencialmente as capitais) mantêm ou mantiveram durante muito tempo os seus  aeroportos existentes. Paris mantém ativos o aeroporto de Orly e de Le Bourget. Madrid aposta na  ampliação do aeroporto de Barajas e mantém o aeroporto Cuatro-Vientos (construído em 1911). No caso  de Berlim, os aeroportos de serviço da 2ª guerra mundial só foram desativados em 2010 (Tempelhof) e  2020 (Tegel). Há quem dê um passo de cada vez e sempre com um dos pés bem assente …

Advertências e discordâncias

Quem está no ramo da aviação comercial está mais próximo das tendências dos destinos procurados pelos  seus passageiros. Talvez por isso a EasyJet já tenha aconselhado uma expansão do Aeroporto Humberto  Delgado em vez de um novo aeroporto. Há que ter em conta que tem sido a proximidade dos nossos  aeroportos com as principais cidades, o fator de expansão do turismo em Portugal. Recentemente houve  um congresso em Lisboa que reuniu vários cientistas, professores universitários e investigadores em  Lisboa. Foi a proximidade do aeroporto e o acesso rápido aos hotéis da capital que lhes permitiu conhecer  e deslumbrarem-se com a cidade (o que fizeram questão de sublinhar) durante o tempo que reservaram  para si próprios, relaxados e com tempo disponível para turismo sem a preocupação com o tempo de  antecipação necessário para se deslocarem atempadamente para o aeroporto. Querer crescimento  económico e simultaneamente amputar os fatores que o impulsionam, devido a dados preditivos (como  por exemplo o aumento do tráfego aéreo para Portugal e o número de passageiros) cujo fundamento é  altamente suscetível de se alterar devido à duração do projeto é querer “o Sol da eira e a chuva no nabal”.

Por outro lado, do ponto de vista financeiro, Bruxelas já avisou que a comparticipação financeira do Estado  na construção do novo aeroporto (sem considerar todas as infraestruturas que irão ser necessárias) – o  tal que tem vindo a ser referenciado sem custos para o contribuinte – é demasiado excessiva face às  disponibilidades financeiras do Estado português, o que é quase um “puxão de orelhas” a Portugal e que  nos envergonha. Já lá vai o tempo em que Portugal financiava secretamente as guerras entre nações  europeias cuja realeza até era família (Ref: História da Economia Mundial).

A utilização do dinheiro público neste projeto merece mais atenção de nós todos para que o novo  aeroporto de Lisboa não vá fazer companhia ao aeroporto de Beja. Aquilo que se pretende para Lisboa, já  está a ser feito em Madrid, Barajas, que se pretende constituir como a grande plataforma logística ibérica, o que pode desde já ditar o fracasso do projeto português. Como explicar que atualmente um voo para  Nova Iorque a partir de Lisboa seja o dobro do preço de um voo Madrid – Nova Iorque – e o avião é o  mesmo, só que faz escala em Lisboa. Ou seja, é mais económico ir a Madrid apanhar um voo para Nova Iorque, do que esperar pela escala do mesmo avião e seguir diretamente de Lisboa para Nova-Iorque.

Sem que os problemas de base da população relacionados com a Saúde, Educação, Segurança Social,  Habitação, Crescimento Económico, Emprego e Soberania Financeira estejam resolvidos, cujas promessas  de resolução vão sempre sendo adiadas após as eleições, só o egoísta carreirismo político sempre  submisso a tudo o que possa dar votos pode permitir um investimento desta envergadura no  enquadramento geral crónico em que temos vivido. Talvez por culpa nossa, que livres de opinar, nos  abstemos de intervir, temperamento a que os nossos políticos estão (mal) habituados. A cidadania  interventiva não se limita ao voto em eleições livres. Pelo contrário, deve intensificar-se depois deste ato.