Depois de escrever um texto provocador sobre a Circulação e o Apoio às Artes (com contributos de tantos colegas), e de o ter lido em 2017 nas Jornadas do Teatro que aconteceram no Teatro Nacional São João, no âmbito do FITEI, fui contactada por Tiago Guedes, director artístico do Teatro Municipal do Porto, que me convidou a pensar num projecto para a rentrée do Teatro Rivoli, em Setembro de 2019. O mote seria a ideia de “ocupação”, tema que marca a história deste teatro. O repto foi: “Porque é que se ocuparia o Rivoli em 2019?” Acordámos algumas coisas. Tiago Guedes disse que: 1) a direcção artística do teatro teria de se afastar do projecto, pois só assim seria mantida a sua essência; 2) o projecto deveria ser disruptivo, fora da caixa. Eu respondi que: 1) não seria uma feira medieval ou uma recriação histórica de um momento particular; 2) teria de ser um projecto que desafiasse a instituição. Ambos aceitámos. A intervenção do director artístico no projecto terminaria aqui, bem como as suas ideias – a partir desse momento, eu tinha carta-branca. Seguiram-se vários meses de trabalho. Reuni uma equipa pluridisciplinar e começámos a pensar no projecto. Em Outubro de 2018, reuni com a direcção artística do TMP para apresentar as grandes linhas do (Des)ocupação, um projecto arriscado e em grande escala. Reconheço que a essência do projecto era complexa. Não se pode encomendar uma ocupação. Uma ocupação é um acto espontâneo e anti-sistema. Como fazer um projecto que desafia a instituição, dentro e com a própria instituição? Estas questões eram alvo de reflexão constante, e traçavam desafios quer à minha equipa quer à equipa do teatro. Mas isso era o que nos entusiasmava.

Os problemas com o TMP começaram a partir dessa reunião de Outubro de 2018: começou a ser evidente a hesitação do teatro, e depois o recuo. Aquando do cancelamento, o director artístico afirmou que “talvez o projecto fosse demasiado arriscado para a instituição”.

Primeiro, constatámos que o que era acordado em reuniões e emails com o TMP não era cumprido. Começámos a pressentir o boicote, mas fomos sempre tentando arranjar alternativas, cedendo em algumas coisas, alterando outras. A resistência ao que tinha sido previamente acordado – não interferência do TMP – foi-se tornando, contudo, cada vez maior, e tornou-se veemente quando eu e a minha equipa começámos a produzir materiais: textos, manifestos, regulamentos, imagens, etc. O escrutínio do TMP passou a ser implacável: estávamos sob constante vigilância, inclusivamente por parte da administração do teatro; todos opinavam sobre escolhas artísticas, propunham mudanças, diziam se gostavam ou não gostavam, trocavam olhares autoritários. Houve várias reuniões de controlo, com mais de quatro horas cada, na presença de mais de uma dezena de pessoas da equipa do TMP, em que o objectivo passava a ser tentar convencer o teatro das nossas ideias, apresentando soluções para a sua execução e alternativas para tudo o que o TMP não queria que acontecesse. Importa referir que em nenhum momento colocámos a segurança do teatro em risco: todas as propostas eram conscientes, quer do ponto de vista prático, quer do ponto de vista orçamental.

O Salão dos Recusados, parte do projecto e foco das notícias recentes, foi uma das questões que mais constrangimentos levantaram. O TMP começou por assegurar que iria colaborar connosco no mapeamento e contacto de todos os artistas que ao longo do tempo apresentaram propostas ao teatro e foram recusados. Durante seis meses, o TMP fez-nos acreditar que estava a trabalhar nesse sentido. Ao fim de seis meses, foi-nos dito que afinal não iriam colaborar connosco neste ponto, alegando que a “respeitabilidade institucional” os impedia. O TMP sabia que com esta sua decisão, comunicada tão tarde, o Salão dos Recusados dificilmente aconteceria. Não desistimos: nessa mesma reunião, acordámos com o TMP que iríamos colocar em marcha um plano B de recolha destes contactos e que o teatro nada teria a ver com a sua concretização, por causa da tal “respeitabilidade institucional”. Criámos um site próprio, pois o teatro não estava disponível para colaborar, abrimos uma open call, escrevemos um regulamento, fizemos cartazes, imprimimos e colámos pela cidade, escrevemos comunicados de imprensa. O objectivo era noticiar que procurávamos os recusados pelo TMP. Todas estas ideias foram partilhadas com o teatro. Agimos de boa-fé, nunca divulgando nenhum documento, texto ou imagem sem a aprovação do TMP, mesmo depois de ter sido acordado que o teatro estaria de fora desta acção. Mas foi precisamente aqui que começou a censura. Nenhum dos meus textos poderia referir-se aos recusados pelo TMP como “Recusados” (teria de ser os “ainda não programados”), e foram sugeridos cortes integrais de frases e mudanças de palavras. Sempre que eu não aceitava, era proibida a publicação do documento. Certo dia, no Café Rivoli, Tiago Guedes entregou-me um texto que eu tinha enviado para aprovação, impresso, todo rasurado a caneta e com anotações sobre o que deveria ser alterado. Pedi para ficar com essa folha e tenho-a comigo.

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Uma das intervenções artísticas que imaginámos e partilhámos com o TMP era a colocação de uma faixa na fachada do teatro durante os dias do projecto, que seria executada por um artista nosso convidado. Questionados sobre o que iríamos escrever, partilhámos as nossas ideias: “aluga-se”, “vende-se”, “trespassa-se”. O departamento de comunicação do teatro disse-nos que nenhuma daquelas palavras poderia constar da faixa, e recomendou-nos que aí fosse escrito apenas o nome do projecto: (Des)ocupação. A lista de palavras proibidas foi-se tornando cada vez mais extensa.

O comunicado de imprensa que escrevi para o Salão dos Recusados foi revisto e reescrito pelo TMP cinco vezes. Quando chegou a versão que o teatro queria que fosse a final, não me reconheci no texto e impedi que fosse enviado.

A premeditação na actuação do TMP culminou no momento em que o nosso contrato entrou em vigor: nesse mesmo dia, foi-nos comunicado em reunião que grande parte do que tinha sido acordado durante sete meses (em reuniões e por email) não iria acontecer nos moldes previstos. E fomos avisados de que seríamos convocados para uma reunião geral com a direcção e a administração, na qual teríamos de responder de que forma iríamos garantir que nenhum dos artistas do Salão dos Recusados comprometeria na sua intervenção a Câmara Municipal do Porto ou o seu executivo. Foi aqui que decidi pôr fim ao projecto. No dia 10 de Junho de 2019, enviei um email ao director do teatro, descrevendo todas as situações, com datas e citações de emails trocados, com todos os pormenores que aqui refiro e outros, e pedi para cancelar a (Des)ocupação.

Não termino sem dizer que reconheço todo o investimento que foi feito pelo actual executivo da Câmara Municipal do Porto na cultura da cidade, e em particular no Teatro Municipal do Porto. Reconheço também a relevância do trabalho desenvolvido pela direcção artística deste teatro. Não é isso que coloco em causa. Este texto não é um ataque pessoal à independência e seriedade de um trabalho de direcção artística, que implica escolhas, riscos, tomadas de decisão e, sim, projectos e artistas que são recusados. O meu texto não tem a ver com o “ódio e ressabiamento”, como se escreveu alhures, dos artistas que não foram programados.

Por último, quero dizer que todos os artistas merecem o meu respeito e que este não deve ser o momento de polarizar posições: ou estás comigo ou contra mim. Os artistas devem ser solidários com os colegas que decidem falar e respeitosos com os que decidem ficar calados. Nunca ocuparei o lugar fracturante de me colocar contra os meus pares, porque nem todos estamos em condições de denunciar ou de ir com certas lutas para a frente. Mas gostava que a partir de agora todos ficássemos numa posição de liberdade que nos permitisse dar continuidade a este debate tão necessário.

8 de Fevereiro de 2020