Quando uma preocupação estética prescinde de uma inquietação ética, não raro gera futilidade. E se esta faz parte de opções pessoais e, em muitos casos, de busca de um certo equilíbrio, ou de uma certa sensação de equilíbrio, associar a futilidade a instituições e estratégias pastorais, torna-se difícil de compreender. Já que os organismos necessitam de dinheiro para serem operativos e as estratégias pastorais consomem tempo pessoal e familiar, e pretendem alcançar um ponto de transformação, a futilidade apresenta-se aqui como um paradoxo. Para quê gastar, futilmente, dinheiro colectivo, e para quê gastar, futilmente, tempo subtraído sobretudo à família? E onde queremos chegar com tudo isto?

O videoclipe do hino das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) Lisboa 2023 (“Há pressa no ar”), conhecido dia 27 de Janeiro de 2021, é revelador. Existe uma inegável preocupação estética, goste-se ou não: os planos da cidade de Lisboa “super na moda”, a importância de que se veja o património imobiliário católico, juventude gira que canta e ri, passeia pelos bairros pitorescos, por jardins e esplanadas óptimas, e terminam na praia da baía de Cascais. As dúvidas que me assaltaram estão na narrativa do videoclipe, nas suas escolhas, e sobretudo, nas suas omissões, naquilo que me parece ser uma gritante ausência de reflexão ética e de estratégia pastoral. Mas o problema não está no videoclip, este só revela, como que em amostra, o que temos. “Todos vão ouvir a nossa voz”. Quem são esses “todos”? E a “nossa voz” refere-se a quem? Quem são os nós e os eles?

Eu não compreendo como é que, mesmo a pagar, ninguém se incomode com um videoclipe, que pretende ser o rosto do acolhimento das jornadas, e que vai rodar à exaustão até 2023, que consegue ser representado apenas por arianos. De facto, a igreja dos eventos, dos festivais, dos musicais, das procissões, dos grandes ajuntamentos, é sobretudo ariana, e considerando as horas de muitos desses eventos e a única opção de transporte pessoal, também se pode acrescentar: rica. E, sendo uma constatação, não é para moralizar: é o que é. Porém, continuamos a marcar passo com a concretização de “uma igreja pobre para os pobres”, continua a ser uma frase distante e invisível a “opção preferencial pelos mais pobres”.

Quantos “bairros sociais” tem a área metropolitana de Lisboa? Segundo o videoclipe, zero. Como se caracteriza o estereótipo “jovem católico de Lisboa” no videoclipe? É branco, veste muito bem, gosta de sair à tarde com os seus amigos, também eles brancos e com bom gosto na indumentária, andam de skate, entram numa igreja, gostam de uma esplanada no sunset, não usam transportes públicos, e vão para a praia até à noite. Como é que o videoclipe define caridade? Alguém oferece 6 pasteis de nata num grupo de 4 pessoas. Apenas um se serve, e os 5 pasteis, que passam a ser restos do grupo, dão-se a uma velhinha. Também se percebe como referência à reflexão sobre a caridade, a escolha de um rapaz portador de deficiência motora, apesar de parecer uma afirmação de que “assim não nos podem acusar de falta de integração”.

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Percorremos o centro turístico de Lisboa, fomos à freguesia mais rica da cidade de Lisboa – Parque das Nações –, e ainda demos um saltinho a Cascais. O que é que se escolheu deixar de fora do videoclipe?

O processo de criação da freguesia do Parque das Nações, que culminou em Novembro de 2012, ficou conhecido pelas pressões que se exerceram sobre vários deputados da Assembleia da República para que não cedessem na votação à mistura do território. E foi essa a pressão que ganhou. Onde em quase todo o lado se fundiram freguesias já existentes, o caso do Parque das Nações emerge como contra-corrente: excluíram-se as zonas mais feias de Marvila, retirou-se a faixa costeira dos Olivais e de Moscavide (Loures), e assim se conseguiu um território novo e coeso, onde não há pobreza. Vários cidadãos muito lúcidos, e que se interessam pela “coisa pública”, entre os quais, também católicos, insurgiram-se nessa altura com a vergonha da criação de uma freguesia à medida de alguns interessados e sem qualquer preocupação de inclusão. Foi com alguma tristeza que muitos assistimos ao confinamento da nova paróquia com os mesmos limites da freguesia, com o que isso significa. Uma freguesia rica, para ricos. Uma paróquia rica, para ricos. Se a Expo’98 serviu para a conversão de uma zona de contentores numa pequena urbe, o mesmo não se poderá dizer em relação às JMJ, que vão apenas valorizar a urbe super-valorizada que já lá está. Não está ao nosso alcance a decisão do espaço. É pena que não seja uma oportunidade de requalificação de zonas pobres e feias e sujas, mas é o que é. Mas já que tem de ser assim, porque é que o videoclipe não promove as ruas invisíveis e as pessoas invisíveis? Porque não se aproveitou para colocar o Bairro Padre Cruz no mapa por razões estéticas e éticas? Porque não se envolveu a comunidade cristã do Bairro da Cova da Moura para que pelo menos agora ganhassem alguma coisa com as JMJ em Lisboa? Porque não Monsanto e o Bairro da Boavista? Aeroporto, Charneca do Lumiar, Camarate, Bairro da Torre? Será que não conhecem um projecto de intervenção social com preocupações éticas e estéticas onde se pudessem inspirar?

De facto, o que não é visto, não é lembrado. E na hora de se fazer alguma coisa, o mais óbvio é fazer com o que me lembro, e com os que me lembro. Foi uma oportunidade perdida para educar o olhar. Para lembrar que há baptizados com piercings e tatuagens, que há jovens baptizados que cuidam de homens e mulheres e homens-trans e mulheres-trans que se prostituem para sobreviver, que há jovens que ajudam crianças com os trabalhos da escola quando os pais mal sabem se vão à escola, que há jovens inquietos com as desigualdades sociais que tentam casar o desperdício de muitos com a fome de alguns, que há jovens baptizados activistas contra todo o bullying, incluindo o bullying de género tão expressivo nos ambientes católicos, que há jovens baptizados implicados com a concretização ecuménica, que há jovens católicos que gastam o seu tempo a tentar arrancar um sorriso a uma criança no IPO ou na Acreditar, para que ao menos esse minuto custe menos… Mas a opção foi levantar um obelisco à futilidade da juventude católica. Eu envergonho-me e não me revejo na narrativa.

O que era invisível vai continuar invisível. E o que não se vê, não questiona ninguém. Fica tudo como está, fica tudo para os que já cá estavam. “Todos vão ouvir a nossa voz”, ou melhor, todos os iguaizinhos a nós. E talvez por mais uma oportunidade desperdiçada, essa “nossa voz” vai continuar um bocejo para os diferentes, para os mais distantes, para os mais pobres, para todos os que não vemos nem queremos ver.

Dir-me-ão, mas incomoda-te tanto um videoclipe? A música é boa, a letra mesmo com tantos clichés, era expectável, o arranjo está genial, o trabalho da equipa da música terá sido excelente. O problema não é o videoclipe. O problema não é um lapso, aliás, quem conhece o organigrama das JMJ pode prever com toda a certeza que não vai haver um lapso. Tudo é e será intencional, e esse, no meu modesto entendimento, é o problema, a linha pastoral que cada vez mais aparece definida, e que pouco tem a ver com o desgaste de saliva do Francisco de Roma.

E a responsabilidade não é da Palavra, é de quem tem voz.

Autor do blogue AQUELE QUE HABITA OS CÉUS SORRI