No extraordinário L’Été, Albert Camus reflete sobre o quão longe estamos – exilados, dizia ele – da naturalidade do saber viver próprio da Grécia antiga. Escrevia: “Deusa da moderação, não da vingança, Némesis vigia.”
Hoje, por “Némesis”, entendemos a sanção imposta pela sorte, o cruel castigo do destino. Para os gregos, contudo, não era assim, de todo. Como nos recorda Camus, Nέμεσις (Némesis) era uma figura que representava a medida da justiça humana, guardiã do equilíbrio que traz alegria ao homem. O seu nome deriva do verbo νέμω (némō), que significa “distribuir”, não recompensas nem vingança, mas limites e medidas. Tal como o significado da palavra latina discernere, a tarefa de Némesis era demasiado particular, individual, invisível; cada homem tem a sua própria vida para se pôr heroicamente à prova de acordo com a sua própria e única medida.
Nέμεσις era responsável pelas escolhas dos homens, e não pela justiça enquanto código legal. Essa era a prerrogativa de Δίκη (Díkē). Quando os romanos herdaram boa parte do panteão grego, não souberam compreender a distinção entre limite e pena, entre decisão interior e ordem social. Némesis foi, então, abandonada, confundida com os caprichos do destino e com a vingança do Fado. O sentido de medida perdeu-se para sempre e a Roma antiga entregou-se inteiramente à Iustitia, a vendada deusa da balança, equivalente à grega Δίκη, que dispensava penas e castigos em caso de qualquer infração às leis do Estado.
Vivemos hoje tempos de desmesurado excesso e, ainda assim, lamentamos a escassez do que podemos fazer. Temos sempre cada vez mais coisas, mas não sabemos o que fazer com elas. Tememos a responsabilidade que advém de sermos livres, preferimos a imobilidade, a anestesia do excesso, do medo, a ausência de perguntas, sobretudo a nós próprios.
Respeitamos as leis do Estado, cumprimos as regras de conduta laborais, observamos a política das redes sociais e todos os códigos de comportamento impostos por terceiros, pensando que é quanto basta para viver livre e feliz. Quase nunca nos recordamos de que as leis da alma são distintas, porque respondem a uma lógica íntima (e que somos o derradeiro juiz da forma como escolhemos viver as nossas vidas). No entretanto, vamo-las espezinhando, ignorando, preferindo ultrapassá-las, transgredi-las, palavras que, no início, não tinham qualquer conotação ética ou moral e, muito menos, legal, mas que significavam – do latim excessus e transgressus – «ultrapassar a medida», «cruzar a fronteira».
Perdemos aquela gramática da liberdade grega que prevê a medida certa no agir, já não compreendemos as palavras que, todos os dias, a alma nos dirige e, confusos, tentamos responder-lhe balbuciando a sua linguagem, embora já não a compreendamos. Olhamos para cada limite como um obstáculo a ultrapassar e não como um indício, como um sinal para a felicidade, ou seja, para a liberdade.
Na uniformidade imposta por padrões de consumo, a excentricidade tornou-se, por isso, a única lei para nos distinguirmos dos outros. Não suceda – cruzes! – sermos simplesmente humanos, comedidos! Como é perigoso confessar as próprias paixões! Quão difícil denunciar uma fraqueza numa época em que a procura da perfeição absoluta é desmesurada. Preferimos ser excêntricos – literalmente, ex-centrum, “fora do próprio centro” – em vez de “centrados”, simplesmente dentro de nós próprios.
Os gregos indagaram durante séculos o conceito de “justiça” a partir de uma única medida: a humana. E o mesmo se podia dizer da arte, da poesia, da ciência, da arquitectura: o padrão era o homem, grande, embora mortal. O homem livre para ser herói, isto é, verdadeira e profundamente ele próprio.
Os valores universais sobre os quais a Grécia fundou a sua civilização provinham, sobretudo, da ação, do caso específico do momento, do gesto de um instante. Pré-existiam, existiam antes de todas as coisas. É por isso que os limites guardados por Némesis não eram obstáculos à liberdade humana, mas constituíam a sua prerrogativa e exaltavam a sua beleza. Hoje, todo o limite humano nos parece estreito, não estamos dispostos a sofrer, não queremos abdicar de nada, pretendemos ter tudo.
Damos por nós, a cada dia, mais assustados, indefesos, sozinhos. O principal inimigo, contudo, não é o estrangeiro, o culpado, o invasor, o outro, mas nós mesmos, que vivemos cada dia com relutância e, sobretudo, contra nós próprios.
Os antigos gregos sempre procuraram proteger-se desse sentimento de perda gerado pela intemperança e pelo excesso graças à harmonia, ἁρμονία – belíssima palavra, que significa “ligar, relacionar, unir na proporção certa”.
“Arte”, “amizade”, “beleza da virtude”, palavras que partilham a mesma raiz sânscrita ar- que se encontra em “harmonia” e nas palavras gregas ἀρῶ (arō), ἀρθμός (arthmós), ἀρετή (aretḗ); e também em ἀριθμός (arithmós), ou seja, “número”, donde deriva “aritmética”, não apenas no seu sentido primário, mas, sobretudo, no de saber acertar as contas com a matemática humana, os seus números, adições e subtrações que sempre nos impõe.
Basta ler qualquer texto, tragédia ou comédia: tudo era tão majestoso, tão heroico; mas os gregos não levaram nada ao extremo, para além do limite previsto por Némesis. E, por isso, nada era interdito, do amor ao sagrado, da fragilidade às lágrimas, da lógica à subtil sabedoria, da paixão ao temor.
Hoje, muito do que os gregos conceberam para acompanhar os seres humanos nesta viagem que é a vida encontra-se em crise; e, mesmo onde sobrevive, jaz, dormente.
Não é evidente que bárbaros se encontram à nossa porta, mas vivemos cada dia, quais adolescentes de beicinho trémulo, como Rómulo Augusto, o último imperador romano do Ocidente, pouco mais que um fedelho derrubado por Odoacro e mandado para casa com uma palmada no rabo. Sem limites, criámos um mundo infantil que choraminga, se irrita, atira raivosamente os brinquedos para o chão, pronto para sorrir ao próximo presente, à próxima bugiganga.
Não resta qualquer vestígio de direcção, apenas aquele puro e cego acaso que os Gregos temiam mais do que a guerra: navegar à vista por entre escolhos, uma soma trivial de acontecimentos fortuitos de que ninguém é responsável.
Eis a incapacidade de decidir e, portanto, a submissão definitiva aos caprichos da sorte e do destino: os gregos chamavam Ἀνάγκη (Anánkê) à perda do heroísmo humano, à necessidade de obedecer ao que acontece, sem poder escolher.
A resignação, as dificuldades, as escolhas forçadas têm todas a mesma origem, a ausência de esperança. Quando ela morre, abre espaço à necessidade, à inescapável necessidade de ser e não poder, porque não pode haver futuro para lá do cenário obrigatório; porque, de tão constritos, os limites do espírito ficaram demasiado próximos, e, o sonho, a imaginação, de repente, impossíveis. Na asfixia da necessidade, apenas uma arma pode dispersar ar por galerias vazias – a esperança. Até na tragédia grega pôde viver, ainda que por pouco tempo, a força da esperança, pois apenas ela concede poder aos homens. Sem conceber um futuro, a humanidade não pode agir, ser, porque são as nossas projecções que moldam o presente e a cada balanço do pêndulo que a todos consome, silva no ar a esperança, a última deusa, a nossa última deusa antes do caos.